Casamentos LGBTs triplicam em Salvador após eleição

 

Era tanto tempo um com o outro que os próximos passos foram naturais. Para o mundo, talvez o farmacêutico Felipe Beck, 28 anos, e o estudante e drag queen Michael Cardoso, 28, fossem jovens demais, quando decidiram morar juntos, no início dos 20 anos. Para eles, era a decisão certa.

Agora, após quase nove anos de união e cinco anos sob o mesmo teto, eles decidiram dar mais um passo: oficializar o casamento. A decisão, porém, veio apressada pelo medo de não ter mais direito de trocar as alianças. Diante de um cenário político cheio de incertezas em 2019, casais LGBTs de todo o país têm corrido para casar ou dar entrada nos papéis do casamento ainda este ano.

Em alguns cartórios de Salvador, a demanda desse público triplicou: de dois pedidos por mês, passaram a seis em poucos dias. “Essa incerteza de poder não casar acabou impulsionando a gente a oficializar. A gente dizia que, um dia, quando tivesse dinheiro, a gente casava, mas essa situação acabou apressando”, explicou Felipe.

No Grupo Gay da Bahia, as buscas por orientações sobre como oficializar a união também cresceram. Foi no GGB, ainda antes da autorização oficial para as uniões homoafetivas, que os primeiros ‘casamentos’ começaram a ser feitos. Após uma celebração, um documento era emitido atestando uma união. Depois, era registrado em cartório, como uma forma de tentar assegurar direitos aos casais.

“Várias pessoas têm ligado para perguntar como se casar. Aumentou e eu associo isso à incerteza sobre uma possível revogação da política que permite os casamentos LGBTs. Eu peço que as pessoas tenham calma, que não façam nada de forma intempestiva. Mas que, aqueles que desejam, casem, porque é muito bonito, muito bacana”, diz o presidente do GGB, Marcelo Cerqueira, que não acredita que as coisas irão mudar.

“O presidente eleito falou que não tem preconceito e que a homofobia será punida com a lei. Eu espero que essa política dele institua a tipificação da homofobia enquanto crime, porque essa é nossa principal demanda, já que as pessoas morrem por serem LGBT”, completa.

No Cartório de São Caetano, que abrange 26 bairros, como Cabula e Pernambués, pelo menos seis casais deram entrada nos pedidos de casamento desde o dia 28 de outubro, após o resultado das eleições. Normalmente, é de duas solicitações por mês. Em alguns períodos do ano, não há pedido algum.

Só para dar ideia, em toda Salvador, de janeiro a outubro, de acordo com o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA), houve 19 casamentos LGBTs – ou seja, menos de dois por mês. Mas não foi só em São Caetano. No Cartório de Pirajá, a direção aponta um aumento “discreto”. Na semana passada, a primeira após o resultado da eleição, houve apenas uma solicitação. Essa semana, já foram três. No Cartório da Vitória, somente na manhã de sexta-feira (9), foram três solicitações.

A ideia dos casais é dar entrada nos papéis ainda este ano. A mobilização começou depois de uma declaração da presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual e de Gênero do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Maria Berenice Dias, após a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência da República.

Na semana passada, ela aconselhou que casais LGBTs corram aos cartórios e garantam, agora, o que pode não estar tão certo no futuro.

Corrida
Para Maria Berenice, o presidente eleito não tem compromisso com os direitos dos gays. Ela declarou estar preocupada com a possibilidade de que um Congresso mais conservador pudesse vir a aprovar leis mais restritivas.

O direito ao casamento LGBT foi assegurado pela Justiça. Primeiro, em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito à união estável entre pessoas do mesmo sexo.

Depois, em outubro de 2012, o TJ-BA permitiu o casamento homoafetivo no estado – a Bahia tornou-se, assim, o terceiro estado a reconhecer e permitir o casamento LGBT. Mas foi só em 2013, após uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que todos os cartórios do país foram obrigados a realizar casamentos LGBTs.

Foi justamente depois de saber das declarações da conselheira federal que Felipe e Michael perceberam que não dava mais para adiar. No dia 1º, Felipe foi ao Cartório da Vitória para se informar do processo. Embora ainda não tenham dado entrada – ainda faltam alguns documentos de Michael –, os dois já decidiram: de janeiro, o casamento não passa.

Assim que os documentos chegarem, os dois devem marcar a data. A ideia é que seja no dia 10 de janeiro, quando oficialmente completam nove anos. Para a festa, já estão planejando um casamento drag, celebrado por uma drag queen.

Para Michael, na verdade, os dois estão casados desde o primeiro dia de relacionamento. Desde que se encontraram pela primeira vez, depois de marcar um encontro no Orkut, rede social que foi encerrada em 2014, sempre estiveram muito próximos.

“O casamento é mais para assegurar o que a gente tem, em questão judicial. São nove anos juntos e a gente não sabe como vai ser a burocracia a partir do dia 1º de janeiro”, disse.

Nos cartórios
A cada casal que entrava pelas portas do Cartório de Registro Civil de São Caetano, em Pernambués, para dar entrada no processo de casamento civil, o coordenador de casamento, Leonardo Gonçalves, observava a mudança. Em poucos dias, tinha recebido o dobro de pedidos de casais LGBTs do que em todo o mês anterior.

Além do amor e da vontade de trocar alianças, todos os casais que foram em São Caetano nos últimos 15 dias tinham algo em comum: o discurso. “Eles já chegam dizendo isso que a gente tem lido, que estamos vendo na internet. Falam do novo governo, dizem que vão perder direitos. Teve um aumento muito grande, porque eles não têm costume de vir. Muitos casais preferem união estável, que são feitas nos tabelionatos”, explica Leonardo.

O CORREIO procurou 11 cartórios de registro civil de Salvador nesta sexta-feira. Em pelo menos três, houve aumento. Em quatro, não houve resposta. Nos cartórios do Pelourinho e da Conceição da Praia, não houve pedidos de casamento – nem mesmo entre casais heterossexuais nos últimos meses. Já no cartório de Amaralina, houve duas solicitações, o que foi considerado dentro da média mensal.

A professora Ana*, 34 anos, e a psicóloga Vitória*, 31, se conheceram há um ano. Durante esse período, Ana apresentou um problema de saúde. Vitória, no entanto, não pôde estar acompanhando a namorada aos tratamentos médicos. Sentia-se, então, impotente. Sem a comprovação de um matrimônio entre as duas, Vitória jamais poderá se dedicar de forma plena à pessoa que escolheu amar.

O casamento já estava nos planos, mas precisou ser adiantado sobretudo por conta da saúde de Ana. O desejo, conta o casal, surge em meio a um momento em que cresce a ameaça em relação às garantias dos direitos LGBTQ.

“Os casais heterossexuais têm esse reconhecimento perante à sociedade e isso é importante para gente, para a nossa construção enquanto sujeito”, diz Vitória.

Entre os amigos, a psicóloga sente que há uma preocupação em iniciar o processo de reconhecimento de vínculo conjugal. Um desejo despertado após o início da corrida eleitoral deste ano. “Eu tinha que ter a minha mãe como acompanhante. Ela não podia estar do meu lado, nos acompanhamentos médicos e nas visitas ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)”, lamenta Ana.

As duas iniciaram o processo e esperam se casar até o final de dezembro. Na manhã desta sexta-feira (9), elas estiveram no Cartório da Vitória, na Graça, para atualizar a certidão de nascimento da psicóloga.

Comissão da OAB-BA discorda
Ainda que a presidente da Comissão de Diversidade do Conselho Federal da OAB tenha feito essa recomendação, porém, o presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Enfrentamento à Homofobia da seccional Bahia da OAB (OAB-BA), Filipe Garbelotto, tem outro entendimento.

Para ele, não há motivo para pânico.

“O presidente eleito não pode, numa canetada, invalidar essa questão, porque foi um entendimento do STF. Nenhum presidente pode anular isso”, garante.

Na avaliação de Garbelotto, existem duas formas de haver retrocesso.

Uma delas seria o próprio STF se reunir novamente e mudar o entendimento que teve em 2011. Ainda que dois novos ministros venham a ser indicados ao longo do próximo governo, ele não considera que esses ministros poderiam representar uma maioria.

A outra possibilidade seria através de emenda constitucional, o que é questionado também por alguns especialistas em Direito Constitucional. Para ele, o pior cenário seria justamente o primeiro, caso o STF mudasse de ideia.

“Mas não acho que isso venha a acontecer. E o que for feito na base da canetada vai ser anulado por quem está aí para fiscalizar. A própria OAB está aí para encabeçar isso. Quando a gente acaba naturalizando essa possibilidade de perda de direitos, a gente está, de certo modo, dando um poder para Bolsonaro que ele não merece. Você está trazendo, para uma população fragilizada, um pânico desnecessário”.

Quem decide esperar
Por posições como a de Garbelotto, há casais que estão fazendo o movimento inverso. Depois de refletir mais sobre o assunto, o professor de inglês Alexandre Dias, 30, e o professor universitário Rodrigo Ladeira, 50, desistiram de apressar o casório. Mesmo com medo de perder direitos, decidiram não atrapalhar o sonho do que estavam planejando.

“Já moramos juntos e estávamos planejando algo para o meio do ano que vem. Não acho justo adiantar por causa disso, meter os pés pelas mãos e organizar algo em um mês por conta deles”, afirma Alexandre, que diz esperar que o STF exerça um papel de vigilância em favor das minorias.

Alexandre e Rodrigo estão juntos há quase três anos; moram na mesma casa há sete meses. Decidiram ao perceber que um não conseguia mais dormir sem o outro. Alexandre já passava mais tempo na casa de Rodrigo do que na sua própria. De gerações diferentes, um tem crescido com o outro a cada dia.

Em março de 2019, comemoram o terceiro aniversário. É justamente quando pretendem oficializar a união estável, com uma festa para amigos mais próximos. Até o fim de 2019, porém, o casamento civil deve sair também.

“Acho, se a gente ficar nessa histeria, a gente pode acabar legitimizando esse poder que eles têm sobre a gente. Eles ganham força com esse medo generalizado. É hora de falar e estamos preocupados, mas não vamos aceitar calados que tirem nossos direitos”, pontua Alexandre.

Rodrigo também acredita que, nesse primeiro momento de governo, direitos adquiridos não devem ser contestados. Por isso, está mais tranquilo. “Se eventualmente acontecer, a gente faz essa união fora daqui. o que importa é que a gente já decidiu ficar junto. Mediante essa decisão, a gente se ajeita”.

*Nomes fictícios

MP não acredita que haverá retrocessos quanto ao casamento LGBT
Para a promotora Márcia Teixeira, coordenadora Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos (Caodh) do Ministério Público do Estado (MP-BA), o medo não deve motivar ou inspirar instabilidade. Segundo ela, o MP brasileiro acredita que não haverá retrocesso quanto ao casamento de LGBTs.

“Nós precisamos acreditar que o presidente eleito vai seguir em observância o texto constitucional e a vontade dos brasileiros, não o que uma parcela conservadora, machista e sexista defende. As pessoas LGBTs são brasileiras e brasileiros como qualquer um. O presidente da República, independente do partido, está obrigado à obediência constitucional”.

Na avaliação dela, a maior parcela da sociedade brasileira já consegue compreender que casamentos LGBTs são um fato. No entanto, a promotora garante que, caso exista qualquer movimentação em relação à mudança de legislação, entidades como o MP-BA, a Defensoria Pública do Estado (DPE) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) vão recorrer.

“As instituições que defendem a liberdade de amar e ser amado vão, com certeza, ajuizar ações num sentido para que seja declarada a inconstitucionalidade dessa (eventual) lei”.

Ainda assim, ela reforça que o cotidiano não deve ser pautado a partir do medo. “A resistência começa pelo discurso. Ao longo de muitos anos, o pensamento retrógrado já matou dezenas de milhares de LGBTs, de mulheres. Não posso, como agente político, acreditar que isso vai voltar a acontecer. E não acredito”.

Prestadores de serviço se voluntariam para ajudar casamentos LGBTs
Nos últimos dias, uma campanha oferecendo serviços para casamentos LGBTs se espalhou nas redes sociais. Há desde profissionais a amadores – todos se voluntariando, gratuitamente, para ajudar a realizar cerimônias de casais que tenham decidido adiantar o sonho para 2018.

Na Bahia, a fotógrafa Caroline Paternostro foi uma das que disponibilizou a fotografar, gratuitamente, a união de casais que vivem em Salvador ou em regiões próximas.

“Se vocês moram em Salvador e fazem parte desse grupo, ou mesmo em regiões próximas, trabalharei de graça em seu casamento homoafetivo. Posso fotografar nem que seja um pequeno almoço ou um jantar – só precisamos que nossas agendas também se casem”, escreveu, em uma postagem feita na quarta-feira (5), no Instagram, que tinha mais de 900 curtidas até a tarde de sexta-feira.

À reportagem, ela explicou que ainda não tinha sido procurada, mas que uma pessoa que mora em outra cidade está estudando a possibilidade de vir a Salvador ainda em novembro para o casamento.

“Minha irmã é lésbica e a gente está na militância desde o primeiro turno (das eleições). Foi ela que dividiu comigo a matéria (sobre a recomendação da OAB). Dentro da política, nunca esteve mais forte para mim a questão da espiritualidade, da empatia”.

Para maiores informações, é possível acessar o perfil dela no Instagram – @carolinepaternostro_fotografia

A fotógrafa Tayse Argôlo também se disponibilizou a fotografar gratuitamente casamentos no civil e até em playgrounds de prédio. Assim como Carolina, ela também depende apenas que a disponibilidade da agenda combine com a data do enlace.

“Sou fotógrafa de famílias e apoiar a união de uma nova família, de um forte laço de amor, em um momento tão cheio de dor que vivemos, é a forma de colocar a minha profissão a favor do que acredito e do mundo que quero viver”, disse. É possível contatá-la através do seu perfil no Instagram – @tayseargolofotografia.

 

*Correio 24h/ Me Salte



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