Apagão leva moradores do Amapá de volta à época da lata d’água na cabeça

 

A lata d’água na cabeça voltou a ser uma rotina das mulheres que vivem nas chamadas áreas de ressaca em Macapá desde o apagão que retirou o direito à energia elétrica de 90% da população do Amapá. Para as famílias que vivem em favelas sobre a água, o efeito do apagão foi muito mais devastador, diante de uma marginalização histórica dessas comunidades.

A reportagem esteve no bairro de Congós, onde 24 ruas que são mais conhecidas pelo número do que pelo nome terminam em pontes de madeira suspensas sobre a água parada de um lago. Ao lado de cada uma dessas pontes, vivem de 200 a 300 famílias, em casas precárias, com energia fornecida por meio de “gatos” e água bombeada de poços artesianos cavados em terra firme.

O apagão, e um rodízio de energia muito mais severo do que o imposto a áreas mais centrais de Macapá, transformaram ainda mais a vida dessas pessoas – cerca de 30 mil, segundo estimativa de moradores da região. Já são nove dias de agonia.

Sem eletricidade, a água parou de ser bombeada e de percorrer os canos submersos – ou colados à superfície – que garantiam o fornecimento às casas de madeira construídas sobre o lago. Por isso, a saída para uma boa parte das famílias foi ressuscitar a lata d’água na cabeça.

O líquido chega barrento e impróprio em muitas casas. O resultado é o adoecimento das crianças, principalmente diarreia e vômito, como notaram as líderes do Centro de Atividades Sociais da Periferia (Casp).

A entidade funciona na rua 10, a poucos metros do início da ponte, que se estende lago adentro por cerca de 200 metros, em meio a um emaranhado de fios de eletricidade. O cenário se repete pelas 24 vias do mesmo bairro, em maior ou menor extensão.

Nessas baixadas, como também são chamadas as áreas de ressaca, os moradores se sentem mais expostos à violência. O breu à noite fez aumentar os episódios de roubo, segundo relatos dos moradores.

Não há coleta de esgoto nem de lixo. Os rejeitos vão direto para a água do lago. Num único cômodo, vivem cinco, sete, dez pessoas. O mais comum é a existência de uma só torneira, na frente da casa. Com o apagão e os severos rodízios de energia, a água pouco tem chegado a essas torneiras.

Não existe nenhuma chance de distanciamento social nas aglomerações das pontes. A falta d’água agrava a exposição ao novo coronavírus.

As áreas de ressaca fazem parte da geografia de Macapá. Com o tempo, as pontes foram encolhendo, o que significa que as extensões de ruas foram crescendo, na medida em que havia novos aterramentos. Mas ainda existem dezenas dessas áreas, na capital e em Santana, uma cidade vizinha.

As de Congós estão entre as mais populosas. Dez anos atrás, eram 18 mil pessoas. Hoje são 30 mil, estimam as lideranças do Casp, vinculada à Central Única das Favelas (Cufa), no Rio de Janeiro. A Casp faz campanhas de arrecadação para distribuir cestas básicas aos moradores.

“Eu nasci morando em ponte”, diz a dona de casa Ana Paula Lima, 35, numa frase que resume a relação de Macapá com as áreas de ressaca. A primeira ponte ficava em Buritizal. Depois, a mãe conseguiu um terreno. Durou pouco tempo o período de terra firme, e a família se mudou para a ponte na rua 10, em Congós.

Lima está na região há 25 anos. A mãe e mais três irmãos têm uma casa sobre o lago. Na ponte, o apagão teve efeitos muito piores do que em terra.

Mãe de três filhos, o mais novo com dois anos, Lima passa as noites sem energia e sem ventilador. Ela e o marido, que é estoquista e ganha R$ 1,2 mil por mês, se revezam na madrugada na tarefa de abanar as crianças, uma forma de livrá-las dos carapanãs. Os mosquitos são abundantes em regiões amazônicas. Sobre a água parada, são ainda mais presentes. “Sem ventilador, o bicho fica ferrando o tempo inteiro”, afirma Lima.

Os carapanãs não preocupam tanto quanto a água que seus filhos consomem. Com o aumento do preço da água mineral (um garrafão chega a custar R$ 20 na região, enquanto em tempos normais vale cerca de R$ 6), a família voltou a usar a água de um poço.

“Eu havia passado a comprar água mineral depois que a bebê teve uma infecção intestinal em razão da água do poço. Como subiu muito, voltei para o poço”, conta Lima.

No dia do apagão, terça-feira, 3, ela não conseguiu sair de casa para ir ao velório de um tio. “Estava tudo escuro, e tinha o risco de levar um tiro, de ser assaltada. Além disso, a polícia aqui é muito violenta. Só aparecemos na manhã de quarta”, diz a dona de casa. O velório no escuro teve a presença quase única da tia de Lima.

Na rua 9, as pessoas aguardavam, com seus garrafões vazios, a chegada de um caminhão com água mineral, fruto de doações em vaquinhas organizadas pela Casp e por outras lideranças comunitárias do bairro.

Maria Sônia Silva, 50, voltou a carregar água em latas sobre a cabeça: “Eu pego nos vizinhos, duas vezes por dia. Tinha quatro anos que eu não carregava água no balde”.
Silva tem cinco filhos. Três vivem com ela ao lado da ponte que é uma extensão da rua 9. O marido, pintor de carros, só trabalha quando tem energia na oficina.

Tanto quanto a água, a escuridão é um problema sério na rotina dos Silva. A filha mais velha faz tratamento para depressão e síndrome de pânico. O escuro impacta diretamente sua saúde mental. A família consome cinco caixas de vela por dia.

Só há energia na ponte onde vivem entre 18h e 19h e de 2h da madrugada ao meio-dia. “Se apaga a luz, minha filha passa mal. Ninguém quer ficar na escuridão”, diz a dona de casa.

Fonte: BN



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