Guerra política em torno das vacinas contra Covid-19 ameaça adesão à imunização

Mesmo sem prazo para que uma vacina contra o coronavírus possa ser oferecida, a guerra política já deflagrada em torno do tema traz preocupação entre gestores e especialistas em saúde. Eles temem a existência de planos de vacinação diferentes dentro do país e, o mais grave, uma queda na adesão à imunização.

Na última semana, as declarações do presidente Jair Bolsonaro contra a “vacina chinesa do João Doria”, em referência ao governador paulista e seu adversário político, levaram o Ministério da Saúde a recuar de um anúncio de intenção de compra de 46 milhões de doses da Coronavac.

O imunizante, que está em desenvolvimento pela empresa chinesa Sinovac e será produzido no Brasil pelo Instituto Butantan, está na terceira e última fase de testes.

A Folha apurou que, caso a situação não seja revertida, São Paulo já tem o esboço de um plano estadual de vacinação para uso de parte das doses —não há informações sobre a quantidade.

Enquanto isso, alguns governadores já cogitam a possibilidade de um consórcio para a compra de vacinas.

Outro possível efeito colateral dessa briga seria uma menor oferta de doses que poderiam ser incluídas no PNI (Programa Nacional de Imunizações).

“O risco é de imunizar menos pessoas do que a gente poderia”, afirma Carlos Lula, presidente do Conass, conselho que reúne secretários estaduais de saúde.

Coordenadora do PNI entre 2011 a 2019, a epidemiologista Carla Domingues tem preocupação semelhante.

“A questão neste caso não é nem atrasar o cronograma, é diminuir a possível oferta de vacinas. E a tão discutida imunidade de grupo só acontece se a maioria das pessoas é vacinada”, afirma.

Atualmente, o Ministério da Saúde já tem contratos para oferta de ao menos 140 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 quando estas estiverem disponíveis.

Dessas, 100 milhões viriam por meio de um acordo com a Universidade de Oxford (Reino Unido) e a farmacêutica AstraZeneca para transferência de tecnologia à Fiocruz. Essa vacina também está na última fase de testes.

Os outros 40 milhões seriam por meio da Covax, iniciativa vinculada a OMS (Organização Mundial de Saúde) e que acompanha estudos de nove potenciais vacinas para oferta entre países.

Domingues, porém, lembra que tanto a vacina de Oxford quanto a do Butantan devem ser aplicadas em duas doses, o que reduziria a previsão à metade. A oferta também depende da conclusão de estudos, sem prazos. ​

A disputa em torno das vacinas pode acabar também desorganizando a estratégia de vacinação no SUS, centrada em planos nacionais, com iniciativas estaduais e municipais restritas a surtos ou ações pontuais.

Para Carlos Lula, do Conass, o ideal é que haja uma única estratégia nacional. “Por isso tentamos desde o início que todas as vacinas, ainda que haja alguma iniciativa paralela pelos estados, entrem no Programa Nacional de Imunizações. É um equívoco fracionar isso.”

“Podemos ter uma região privilegiada em relação a outra, gente de outro estado viajando para tomar vacina e gente do próprio estado não querendo tomar”, diz a epidemiologista Carla Domingues.

À Folha um representante do ministério disse que ainda não se pode falar em impactos, já que o plano final dependerá do resultado dos testes e da aprovação na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A pasta tem defendido que a ideia é trabalhar com diferentes vacinas.

Para Mauro Junqueira, do Conasems, conselho que reúne secretários municipais de saúde, a atual guerra política em torno das vacinas “não tem que ser levada em conta”.

“É uma briga inútil de algo que ainda nem foi aprovado. Quando isso acontecer, sabemos vai ser incorporado.”

Se não há consenso sobre os possíveis impactos nos planos de vacinação, um ponto é comum entre os especialistas ouvidos pela Folha: as declarações de Bolsonaro ameaçam reduzir a confiança nas vacinas e a adesão à imunização.

Nos últimos dias, o presidente disse que era contra a compra de uma vacina chinesa por não acreditar na sua segurança e que o brasileiro não poderia ser cobaia de vacinas. A fala desconsidera o fato de que a maior parte dos insumos usados em outros imunizantes também vem da China e que qualquer oferta de vacina só ocorrerá após comprovação de segurança e eficácia.

“Esses discursos contraditórios vão criar uma onda de desconfiança na vacinação, uma situação com vacina, gente treinada pra aplicar, postos de saúde, investimentos milionários e sem gente querendo se vacinar. Corremos esse risco”, afirma Renato Kfouri, diretor da Sbim (Sociedade Brasileira de Imunizações).

Outra discussão recente envolvendo a vacina, sobre a obrigatoriedade ou não da imunização, foi considerada fora de contexto por especialistas.

“O que elevou a cobertura vacinal nos últimos anos não foi a obrigatoriedade, mas, sim, o conhecimento da população sobre a importância da vacina. Essa questão de obrigatoriedade ficou lá em 1904, na Revolta da Vacina”, diz Domingues.

Para ela, as declarações recentes do presidente podem “pôr em risco a credibilidade do processo de vacinação”. “Se o presidente diz que vacina quem quer porque não é obrigado e não precisa, ele passa a mensagem de que se vacinar é secundário. É uma mensagem dúbia, confusa e que vai impactar na adesão.”

O Ministério da Saúde afirma que “tem realizado esforços para proteger a população com ações de prevenção e aquisição de vacinas e de transferência tecnológica”. Segundo a pasta, além dos acordos com AstraZeneca e Covax, a previsão é que a Fiocruz tenha capacidade de produzir, de forma independente, de 100 a 165 milhões de doses a mais ao longo do segundo semestre de 2021.

A pasta diz ainda que “segue acompanhando estudos em desenvolvimento no mundo e não descarta novas aquisições, primando sempre pela segurança, eficácia, produção em escala e preço justo”.

Questionada sobre se o protocolo de intenções com o Butantan, para a compra das vacinas da chinesa Sinovac ainda está mantido, a pasta não respondeu. A iniciativa, no entanto, já não era citada na nota enviada à Folha na sexta (23).

Sobre o risco de queda na adesão, o ministério disse apenas que “após registro junto à Anvisa, as doses chegarão à população por meio do PNI, que há décadas garante o sucesso das campanhas nacionais de vacinação.”

BNews



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