Machismo que mata homem: eles são oito em cada dez vítimas de suicídio na Bahia

Nascido em uma família de fazendeiros, Conrado* cresceu ouvindo como um homem deveria ser – bruto, agressivo, heterossexual. Um dia, quando o pai descobriu que ele brincava com as bonecas Barbie da irmã, ordenou que fossem todas doadas. Já Lúcio* foi atormentado por um ideal que não existia. Tentou descobrir o que era “ser homem” da maneira que hoje considera ser mais problemática: na pornografia.

Em algum momento de suas vidas, Conrado e Lúcio tentaram cometer suicídio. Para os dois, a gênese dos problemas começou ainda na infância: uma criação patriarcal e expectativas de uma masculinidade impossível de ser alcançada. Era a tal masculinidade que se torna tóxica. Conrado e Lúcio quase foram mortos pelo machismo que também mata homens – o mesmo machismo que fez com que o pai da psicóloga Jalane Bezerra, 40, cometesse suicídio em 2010.

“O ambiente machista atravessou toda decisão do meu pai porque ele entrou num processo de falência financeira, mas também de muita falência emocional. Para ele, esse homem provedor, como ele sempre foi e sempre se julgou ser, não poderia permitir que a família passasse por necessidades. Ele tinha que prover, que sustentar”, diz Jalane, hoje, mais de uma década depois.

Relatos como esses ajudam a compreender uma realidade nem sempre percebida, em meio à discussão sobre o mês de prevenção ao suicídio: homens se matam mais do que mulheres e, em muitos casos, o machismo nem mesmo lhes permite pedir ajuda. Em 2020, houve ao menos 680 suicídios na Bahia, de acordo com um levantamento divulgado esse mês pela Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais do Estado (SEI). Oito em cada dez vítimas – 82,6% do total – eram homens.

Mas esse está longe de ser um retrato só da Bahia. Em 2019, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) divulgou um relatório sobre como a masculinidade tóxica influenciava a saúde dos homens nas Américas. Pelas construções sociais sobre a masculinidade, a expectativa de vida dos homens em todo o continente americano chegava a ser 5,8 anos menor do que as mulheres. Assim, um em cada cinco homens morre antes dos 50 anos.

O documento citava o suicídio, ao lado de outras causas, como homicídios, vícios e acidentes de trânsito, como uma das principais razões para isso.

“Os homens pedem menos ajuda, diferentemente das mulheres, que dividem mais, seja com a vizinha, seja buscando ajuda profissional ou conversando com a família”, diz a psicóloga e psicanalista Soraya Carvalho, coordenadora do Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio (Neps), vinculado à Secretaria da Saúde do Estado (Sesab).

‘Tem que ser homem’
O suicídio nunca afeta só a vítima. As famílias – chamadas por especialistas de sobreviventes ou enlutadas – passam a sofrer pelo julgamento, pelo estigma e pela perda em si. A psicóloga Jalane Bezerra viu isso acontecer com a própria família, em Paulo Afonso, na região do Vale do São Francisco. Seu pai, antes de cometer suicídio, em 2010, matou os dois filhos e a esposa, madrasta dela. Assim, até amigos e parentes mais distantes ficaram emocionalmente abalados.

Ele não tinha buscado ajuda psicológica ou psiquiátrica. Acreditava que os medicamentos prescritos pelo cardiologista, um amigo da família, seriam suficientes para qualquer coisa – ainda que o profissional o encaminhasse para a psiquiatria. Mas ele nunca aceitava. Achava que não poderia se expor, por ser alguém conhecido na região.

“Sob a capa machista do patriarcado que não pode falhar, não pode deixar de sustentar ou de prover, ele sucumbiu à doença. Ele tinha um transtorno bipolar e teve um surto psicótico. Saiu de si, cometeu os assassinatos e o próprio suicídio”, conta a psicóloga.

Era comum que seu pai dissesse que ‘era homem’. Que homem de honra deveria fazer isso ou aquilo, que nunca poderia permitir que a família passasse necessidade. Chegou a dizer que preferia matar a todos a deixar que passassem por dificuldades financeiras. “E foi o que ocorreu. Isso tudo é extremamente violentador e tóxico para a formação dos homens em si, porque eles nascem nessa cultura e são praticamente violentados a seguir essa estrutura. É uma travessia extremamente adoecedora e tóxica para com seu modo de existir no mundo”, diz Jalane.

Anos depois, ela acabou decidindo estudar suicidologia. Por fim, desenvolveu a pesquisa do mestrado em Extensão Rural na Universidade Federal do Vale do São Francisco com um projeto para a prevenção do suicídio em escolas. “A masculinidade tóxica, na verdade, assassina a saúde mental do homem. Ela não dá o direito do cuidado e do autocuidado que precisam ser estabelecidos desde a infância”, acrescenta.

Muitas causas
Antes de tudo, o suicídio é multifatorial, segundo a literatura científica da área. Isso significa que, em geral, não há uma única causa. Existem os chamados fatores precipitantes e os predisponentes.

Às vezes, para quem está de fora, pode parecer uma besteira: alguém pode cometer suicídio depois de uma briga no trânsito, de uma perda de emprego ou mesmo após o fim de um relacionamento. Esses seriam os fatores precipitantes. Contudo, o que os especialistas ressaltam é que essa visão reducionista é um erro. Por trás de cada caso, normalmente há histórias de vida, negligência e mesmo de abuso.

Entre os fatores predisponentes, há os traços de personalidade – adolescentes, por exemplo, são muito impulsivos. Em agosto, a notícia da morte do filho da cantora Walkyria Santos, ex-vocalista da banda Magníficos, causou comoção nas redes sociais. Lucas Santos, 16, cometeu suicídio após receber mensagens de ódio depois de postar um vídeo no TikTok. “Tenham cuidado com o que vocês falam, com o que vocês comentam. Vocês podem acabar com a vida de alguém”, declarou a cantora, na época.

Alguns grupos também têm aspectos próprios. Na população LGBTQ+, não é incomum que os índices sejam maiores. Por vezes, são pessoas que já sofrem com um estigma social grande.

“Outra população para se considerar é a população negra, que passa a vida sofrendo o racismo estrutural. Já os homens sofrem também porque o discurso capitalista nos impõe que a gente não pode fracassar, nem errar. Tem que ser macho”, afirma a psicóloga Soraya Carvalho, coordenadora do Neps.

Existem, ainda, fatores de risco como transtornos mentais e abuso de drogas. “Às vezes, a pessoa está passando por um momento tão difícil que não quer dizer que ela tinha um transtorno mental antes, por isso a gente questiona hoje. Suicídio não é doença. É um ato que expressa um grande sofrimento”, completa Soraya.

Entre os que têm depressão grave, entre 15% e 20% podem cometer suicídio – sendo que seria o transtorno mental mais associado. Por vezes, homens ainda são maioria em trabalhos que são mais predisponentes a um transtorno mental, como é o caso dos policiais, que vivem sob muita pressão.

O psiquiatra Lucas Alves, presidente da Associação Baiana de Psiquiatria (ABP) e professor do curso de Medicina da UniFTC, explica que o preconceito que muitos homens ainda têm em buscar psicoterapia e psiquiatria acaba fazendo com que esses transtornos não sejam tratados.

“Pelo menos 80% das pessoas que me procuram são mulheres, sendo que a proporção de quem tem transtorno é mais equilibrada. Nem todo homem que se suicida tem doença mental, mas é muito provável que ela seja um fator predisponente, seja na população masculina, seja na população feminina”,diz.

Em alguns momentos da história, não é incomum que episódios de suicídio sejam mais comuns na população. Isso aconteceu, por exemplo, logo após a pandemia da gripe espanhola, em 1918, quando muitos perderam parentes para a doença, ou após a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, em meio ao período econômico chamado Grande Depressão.

“E nas épocas passadas, a gente não tinha números tão bem feitos como hoje. Mesmo assim, vale lembrar que o suicídio ainda é muito subnotificado. Um indivíduo que chega ao desfecho fatal por um acidente de trânsito que ele provocou, por exemplo, vai ser registrado como uma morte por acidente de trânsito”, completa o psiquiatra.

Transtornos mentais 
Conrado, o jovem do início deste texto, foi diagnosticado com transtorno bipolar. Hoje com 33 anos, faz análise desde os 17. Ao longo desse período, também teve acompanhamento psiquiátrico. Desde a infância, luta com as marcas de um abuso sexual que começou quando tinha 9 anos, vítima de um primo. Ao mesmo tempo, tentava compreender quem era no mundo, mas o ambiente familiar criava uma barreira.

“Existia uma homofobia tão grande que era uma coisa monstruosa para mim. Algumas pessoas ligavam o homossexual ao pedófilo e isso era bem marcante para mim. Quando eu comecei a perceber, na puberdade, que a figura feminina não me atraía, essas coisas foram gerando uma angústia muito grande. Quando comecei a ser assediado sexualmente, embolou uma coisa na outra. Foi uma violência muito grande”, lembra.

O diagnóstico de Lúcio foi outro: de borderline (ou transtorno de personalidade limítrofe). Mas o termo médico veio só mais recentemente em uma trajetória marcada por sofrimento psíquico ao longo de seus 21. Criado pela mãe em uma cidade do interior da Bahia, Lúcio nunca teve uma figura paterna de referência. Ficava sozinho a maior parte do tempo, porque a mãe precisava trabalhar.

Na adolescência, veio a baixa autoestima. A pressão por uma suposta masculinidade já começava a aparecer. “Na nossa sociedade, tem essa questão de que o um homem só é homem pela quantidade de mulheres que fica. Comecei a ver outros garotos de 14 anos sabendo coisas básicas dessa virilidade entre aspas, como brigar em colégio, saber conversar com garotas ou se comportar de uma certa maneira. Na cidade onde cresci, até se você escuta determinados tipos de música, você é taxado de homossexual”, conta.

Aos 16 anos, ele se mudou para outra cidade. No novo município, um pouco maior que o primeiro, vieram os problemas. Todas as inseguranças foram ampliadas, diante de tanta gente nova. Já com 17, vieram as questões sobre o sexo.

“Como não tive uma figura paterna, a doutrinação que segui como orientação sexual foi a pornografia. Até que você cresce e percebe que nem sempre vai ter aquelas mulheres dos vídeos e que não vai ser daquele jeito. Fiquei ainda mais depressivo por não atingir um ideal que, para mim, era um ideal de perfeição”, explica.

No começo de 2018, veio a primeira tentativa de suicídio. Estava no auge da depressão. Não conseguia nem mesmo sair de casa por cerca de seis meses. Ainda em 2018, vieram os primeiros sinais do transtorno mental que seria diagnosticado no ano seguinte. Ao mesmo tempo, Lúcio dava início a outro momento da vida – gastava muito com festas e drogas lícitas e ilícitas. Nem mesmo gostava das drogas, mas sentia-se forçado a ter prazer naquilo.

“Quando eu percebia que não gostava, voltava a ficar ainda mais depressivo. Acontecia a mesma coisa com o futebol, que no nosso país é símbolo de masculinidade. Me forçava a assistir, mas não gostava. Só ficava mais depressivo”, lembra.

Aos 20 anos, chegando em casa embriagado, tentou novamente o suicídio. Foi o período em que entrou na Faculdade de Direito e percebeu que as vozes que escutava tinham aumentado.

“Hoje, eu estou numa fase que ainda tenho um pouco da crise depressiva, mas consigo ver o que é masculinidade como estereótipo. Eu diria que essa foi a base de todos os problemas, porque eu deixei de aproveitar muita coisa e de ver a vida como realmente era”, diz.

O consumo abusivo de drogas – do álcool às ilícitas – não é incomum entre vítimas de suicídio. Existe um problema que está ligado às situações em que a pessoa sofre uma overdose, mas vai além disso.

“Precisamos falar também do encorajamento que muitas pessoas têm quando usam substâncias psicoativas e desconhecem os riscos que estão colocando. Muitos homens vivem essa situação de encorajamento que os coloca em situação de risco”, diz o enfermeiro especialista em saúde mental e psicanalista clínico Eduardo Nascimento, professor da UniFTC, Ucsal e Uninassau.

Masculinidades 
É por isso que alguns pesquisadores falam em ‘masculinidades’ – no plural mesmo. Para o urologista e psicoterapeuta analítico George Deprá Ferrari, é preciso desconstruir até a ideia de que o masculino, por si, tem valor moral ou é agressivo. Há um contexto em que características ligadas ao masculino são valorizadas na sociedade, como a competição e a cooperação.

A masculinidade tóxica, portanto, estaria relacionada a um aspecto “sombrio” do masculino. “O homem tido como tóxico é extremamente vacilante, não é seguro de si. É importante frisar essa diferença porque, na verdade, não é que a gente precise de menos masculinidade. Mas a gente precisa dela em sua forma sadia, madura”, explica o urologista.

Para o médico, a essência do masculino não é abusiva, nem mesmo agressiva.

“A gente tem essa parcela do masculino imaturo, pouco desenvolvido, muito competitivo, que é abusivo realmente e faz um estrago social porque a gente vive numa sociedade patriarcal. Nossa sociedade, por séculos, valorizou esses aspectos de poder. Homens que não têm dúvida da sua sexualidade e de seu papel social não são vacilantes. Eles sabem conversar, são cooperativos”,acredita.

Ter características femininas ou masculinas não é algo específico de um gênero ou de outro. Homens e mulheres podem ter as duas. O problema é que o patriarcado ressalta apenas um desses lados – o masculino. “Não é à toa que os homens são quem mais comete suicídio, mas também quem mais comete violência, quem mais usa drogas. Isso os polariza. Vai dizer que é mais da natureza do homem? Talvez, se o homem entendesse mais de sua outra natureza, poderia viver de uma forma mais plena”.

Historicamente, homens têm resistência a procurar ajuda médica de qualquer especialidade. A maioria só recorre aos atendimentos quando a situação passa a afetar a vida de uma maneira que eles consideram preocupante. Isso normalmente ocorre através da sexualidade. Quando a saúde interfere no desempenho sexual, alguns se desesperam.

“Aí eles procuram ajuda. O símbolo do masculino é o falo. Então, quando você tem uma quebra disso, você tem uma quebra do masculino. Os homens tóxicos, que são muito polarizados, vivem a sexualidade de uma forma muito ruim”,completa Ferrari, que também é sexólogo.

Homens do futuro
Para pensar em novas formas de masculinidade, uma das chaves é a criação dos meninos – os homens do futuro. Para o enfermeiro especialista em saúde mental e psicanalista clínico Eduardo Nascimento, a família precisa ser reformada.

“As mães precisam ser ouvidas, os pais precisam ser ouvidos. E trago também a possibilidade de a gente conseguir conversar na educação sobre gênero, sobre gênero e saúde”, defende.

É possível fazer intervenções individuais ou mesmo nos casais, pensando na educação. Além disso, a escola seria o lugar onde a criança tem mais visão social e pode também ter contato com esses valores.

“A educação doméstica e a educação social são as bases. Isso deveria ser feito desde a primeira infância, mas a educação acaba não permitindo tantas mudanças”, diz.

A prevenção deve tratar o suicídio como um problema de saúde pública. Isso inclui melhorar a notificação dos casos e pensar em estratégias de mudança. “O debate sobre saúde mental deve ser feito não apenas em setembro. Muitas pessoas entendem que falar sobre suicídio acaba incitando o suicídio, mas é justamente o contrário”, diz.

Para quem convive com alguém que já está em sofrimento psíquico ou convivendo com uma angústia incapacitante, o caminho não é dizer para a pessoa simplesmente ‘reagir’, ‘sair da cama’ ou ‘ter fé em Deus’. Como explica o psiquiatra Lucas Alves, presidente da ABP e professor da UniFTC, é o momento de olhar e ouvir a pessoa.

“Temos que estar ali da mesma forma como apoiaríamos aquele indivíduo se fosse uma fratura ou uma doença no estômago”, reforça.

Nesses casos, é sempre importante oferecer ajuda profissional. “Também significa que, para alguém com risco iminente de suicídio, tem que chamar o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), porque é uma emergência que pode levar à morte”.

*Nomes fictícios 

Correio


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