Questão com tirinha da Turma da Mônica sobre meio ambiente foi “censurada” na prova principal do Enem do ano passado

A “censura” sob forma de “leitura crítica” das provas do Enem aconteceu no ano passado. Uma tirinha da Turma da Mônica foi retirada do exame, de acordo com servidores do Inep, por recomendações que surgiram após apreciação do general Carlos Roberto Pinto de Souza, então diretor de Avaliações da Educação Básica do órgão, que morreu de complicações da Covid no início deste ano, e de Camilo Mussi, que era responsável pela diretoria de tecnologia.

Na sala secreta – e sempre dentro dela -, foi deixada uma sugestão para que fosse retirada da prova principal quadrinhos em que um menino indígena aponta para uma cena de árvores cortadas pelo caule, com apenas cotocos deixados para trás, e pergunta para outro colega como os caraíbas, em alusão a homem branco, chamam aquilo.

A resposta é: “Progresso”. O item sobre uma polêmica recorrente no governo do presidente Jair Bolsonaro, que recentemente negou a existência de desmatamento na Amazônia, acabou retirado do concurso daquele ano. A questão só foi usada na prova destinada a jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, que ficam fora do escrutínio dos que tentam adequar o concurso a posições político-ideológicas do governo.

É assim que têm ocorrido as interferências no conteúdo das provas do Enem que levaram, nos últimos dias, à debandada de 37 servidores do Inep, responsável pelo Enem, de cargos de relevância do órgão. A maior parte dos que pediram afastamento trabalha na elaboração e na logística do concurso, que é a principal porta de entrada de estudantes brasileiros em universidades públicas do país.

Toda e qualquer interferência em uma questão do Enem – que os técnicos chamam de item porque cada uma delas envolve meses para formulação, testes e análise estatística para aferir se atingiu o grau de complexidade desejado – tem o efeito de desencadear uma operação minuciosa para sua substituição. É que a prova é pensada para ter um conjunto de questões de graus de dificuldade diferentes e capazes de medir competências muito específicas. Um quebra-cabeça feito para testar com eficácia se o candidato tem ou não condições de ingressar no ensino superior.

Antes de ir para o banco de dados do Inep, cercado de sigilo tão grande quanto o sistema da Receita Federal, a questão é formulada e avaliada por um grupo de professores que são escolhidos por edital público e depois passa por testes de “qualidade”, cuja ideia é medir a eficácia dela para testar um conhecimento importante. Para isso, ela ainda é submetida a turmas do fim do Ensino Médio ou do início do curso superior, público semelhante ao que vai tentar o Enem. Um trajeto que, em 2020, foi interrompido para essa tirinha da Turma da Mônica, que tinha como objetivo verificar se o candidato entendia as implicações que existiam no simples diálogo cheio de ironia entre os dois indiozinhos. Entre as respostas possíveis, a única certa era a “B”, que tratava do conceito de crescimento econômico predatório. Um caso que só pode ser revelado agora porque a questão foi utilizada nas outras provas daquele ano, que não são consideradas as principais, e por isso não será mais utilizada embora tenha voltado para o banco de itens do Inep.

— São ações fora da técnica. A gente fica se perguntando: será que por ser um governo que se considera predatório não quer falar sobre meio ambiente? Mas essa tese não para em pé. A gente não consegue entender as razões dessas interferências — diz um servidor que participou da elaboração da prova de 2020. — Parece aquele ditado de querer ser mais realista do que o rei. O guardinha da esquina vê o discurso do Bolsonaro e quer ajustar a prova a questões que são caras ao presidente.

No Enem de 2020, uma outra questão sobre as diferenças salariais entre o jogador Neymar e a jogadora Marta teria irritado Bolsonaro, a ponto de ter provocado a demissão do presidente do Inep na época, Alexandre Ribeiro Pereira Lopes. Bolsonaro disse que achou “ridícula” a comparação entre os dois atletas e que “o futebol feminino ainda não era uma realidade no país”. Ele também atribuiu a desigualdade salarial a problemas da “iniciativa privada”. “O que o Neymar ganha por ano todos os times de futebol juntos no Brasil não faturam por ano”, chegou a afirmar o presidente. A questão fazia parte da prova de linguagem.

De acordo com outro servidor, dificilmente é feita alteração na questão — em geral, quando há incômodo com perguntas sobre ditadura militar ou questões de gênero, ela precisa ser substituída, o que é previsto, desde que dentro de princípios técnicos, porque faz mal para um banco de itens que tem reduzido de tamanho, ano após ano. Nesses casos, o servidor substitui o item por outro já que os servidores se recusariam a alterar questões aprovadas dentro do procedimento técnico previsto na matriz do Enem.

Desde que Bolsonaro assumiu o cargo, o Inep não cumpriu mais todo o circuito necessário à confecção de novos itens ou questões, o que envolve seleção de professores e pré-testes. A cada ano, estão sendo usadas questões que já constam desse banco e não foram atualizadas, o que é outra grande preocupação dos servidores. Em 2020, além da Turma da Mônica, houve pedido para alterar algumas outras questões, segundo informações de funcionários.

Sobre eventuais pressões sofridas este ano para alterar o conteúdo das provas, os servidores não comentam porque qualquer vazamento pode comprometer o princípio da inviolabilidade da prova. Logo quando o Enem foi lançado, em 2009, uma investigação sobre questões vazadas deixou os servidores sobressaltados.

Muitos temiam que a culpa recaísse sobre eles. Na ocasião, o Ministério da Educação teve que cancelar a prova e remarcar o exame para dois meses depois. Parte das universidades que usariam as notas em seus processos seletivos desistiu. O medo era que isso comprometesse a imagem do Enem, que acabava de nascer, de tal forma que o exame não ganhasse a importância que, de fato, acabou tendo ao longo dos últimos anos. Este ano, cerca de 3 milhões de estudantes deverão fazer as provas.

— O servidor do Inep morre, mas não fala sobre conteúdo de prova — diz um dos servidores que se afastou nos últimos dias.

Um temor dos servidores é que as fragilidades do Enem deste ano respinguem em suas carreiras técnicas. Em geral, entre oito e 10 professores de universidades públicas do país participam da elaboração das provas do concurso em áreas de ciências humanas, linguagem, matemática e ciências da natureza, além de redação. Um dossiê elaborado pelo grupo de servidores do Inep foi entregue ao Congesso e ao Tribunal de Contas da União (TCU).

Procurado, Camilo Mussi não retornou para comentar a retirada da questão da Turma da Mônica da prova do ano passado. Procurada, a assessoria do MEC informou não ter conhecimento sobre o caso e sugeriu que a questão fosse encaminhada ao Inep, que não retornou. Amanhã acontece a primeira prova do Enem deste ano, que começa às 13h30, horário de Brasília, em todos os estados do país.



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