Automedicação é desafio da saúde na era das fake news

Saúde é coisa séria para os brasileiros. Pelo menos é o que mostra uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2013, em que 88% dos entrevistados colocaram a melhoria no setor entre suas prioridades. Já em 2018, antes das eleições, 4 a cada 10 brasileiros apontaram que a área deveria ser maior foco do novo presidente. Apesar disso, índices mostram que, na hora de cuidar do próprio corpo, o brasileiro deixa a desejar.

Junto de costumes como o sedentarismo, maus hábitos alimentares e descaso com consultas de rotina para check-ups, a automedicação está entre as práticas mais comuns no País. O perigo de tomar remédios sem orientação médica, no entanto, é bastante grave, capaz de impactar seriamente não só na vida do paciente como em todo o sistema de saúde.

Uma pesquisa divulgada pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF) em 2019 apontou que 77% dos brasileiros fazem uso de automedicação. Outro levantamento, feito pelo Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) mostrou que 79% dos brasileiros com mais de 16 anos tomam remédios sem prescrição médica.

Os dados assustam organizações de saúde, especialmente em tempos de pandemia. “A visão e opinião da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) é de que a automedicação não é recomendada. Quando falamos sobre remédios, as pessoas devem contatar os médicos, os hospitais, o site do Ministério da Saúde, para investigar a recomendação sanitária”, indica Marcos Espinal, diretor do Departamento de Doenças Transmissíveis da OPAS.

Apesar de parecer inofensiva, a automedicação é capaz de causar reações adversas ao organismo. A simples combinação entre colírios e descongestionantes nasais pode gerar aumento de pressão. Mulheres que fazem uso de anticoncepcional podem engravidar se ingerirem um antibiótico. O uso prolongado de um antiinflamatório não-hormonal pode causar hemorragia digestiva.

Os exemplos não param e vão desde alergias, intoxicação e, em casos mais graves, podem levar à morte. O mais preocupante é que, muitas vezes, essas consequências só acontecem porque o indivíduo não buscou um médico antes de tomar a medicação.

As causas da automedicação
De acordo com especialistas, são alguns os fatores que contribuem para os altos índices de automedicação no Brasil. O primeiro deles é o difícil acesso a serviços de saúde, especialmente em áreas mais isoladas, quando comparado com o acesso a medicamentos.

Demora no atendimento, escassez de funcionários e materiais, consultas rápidas, falta de atenção dos médicos para com os pacientes… são inúmeros os motivos que fazem com que o brasileiro pense duas vezes antes de ir a um hospital todas as vezes que está com algum problema de saúde.  “Muitas pessoas repetem prescrições antigas por terem dificuldade para utilizar os serviços de saúde”, explica Arnaldo Lichtenstein, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Por outro lado, a compra da maioria dos remédios é facilitada pelas leis locais. “Em alguns países, há maior dificuldade para comprar remédios. No Brasil, temos restrição com psicotrópicos e antibióticos, mas outros medicamentos podem ser adquiridos facilmente”, explica Donizetti Giamberardino, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) e diretor técnico e chefe do Serviço de Nefrologia Pediátrica do Hospital Infantil Pequeno Príncipe.

Wellington Barros, consultor do Conselho Federal de Farmácia e professor da Universidade Federal do Sergipe, também coloca a mercantilização do setor como um problema. “Houve uma banalização da farmácia como comércio de conveniência e nos medicamentos como produtos”.

A impressão de que há “uma farmácia em cada esquina”, como simplificou Giamberardino, é cada vez mais real. Se usarmos como base a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), de que deve-se existir uma farmácia para cada 8 mil habitantes, o Brasil está “sobrecarregado”, já que segundo últimos dados do CFF, há uma farmácia para cada 2,4 mil pessoas por aqui.

Carlos Alberto Bhering, professor de pediatria na Universidade de Vassouras, também observa esse fenômeno e cita ainda a abundância de propagandas de medicamentos a que a população é exposta. “No fim dos comerciais eles passam rapidamente aquele recado: ‘Ao persistir os sintomas, o médico deverá ser consultado’ e fica uma coisa quase subliminar logo depois de uma propaganda inteira que prega exatamente o contrário”.

No entanto, o médico também aponta a questão cultural como um fator importante: “Esse hábito está enraizado na cabeça das pessoas de todas as classes sociais, independente de acesso”, opina.

“Mesmo quem vai à consulta médica, que tem um diagnóstico firmado, é muito comum a não adesão ao tratamento prescrito pelo médico de forma completa. A pessoa não toma todos os medicamentos. Não considera que tem que tomar 7 dias de antibiótico se ela já está bem no quarto dia”, concorda Giamberardino. “Isso está relacionado à educação de saúde. As pessoas acabam ouvindo os pais, os amigos, e não os médicos. Como se indicar um remédio fosse algo simples”, completa.

De acordo com uma outra pesquisa sobre automedicação divulgada pelo ICTQ em 2014, 72% das pessoas que admitiram o uso de medicamentos por conta própria afirmaram confiar na indicação de familiares e 42,4% na de amigos. Além disso 68,1% das pessoas disseram que recomendam remédios para os outros. 46,1% confessam que não leem a bula antes do consumo.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também citou o fator cultural e falta de acesso para explicar o fenômeno e reiterou que busca soluções para minimizar os perigos. “A Anvisa, assim como o Ministério da Saúde, tem promovido ações de conscientização da população para o uso racional de medicamentos e dos riscos resultantes da automedicação”.

Dentro da questão cultural, a desinformação, a falta de confiança nos profissionais de saúde e a noção de que cada pessoa sabe o que é melhor para a própria saúde ganharam um enorme combustível na última década: as fake news.

Epidemia de notícias falsas
Já famosas em tópicos como política, economia e cultura, as notícias falsas entraram de cabeça no universo da saúde com a pandemia da covid-19. Entre as mais famosas em grupos da internet, estavam as falsas informações de que o vírus teria sido fabricado em um laboratório na China e de que a doença sequer existia.

No entanto, a desinformação sempre esteve presente quando o assunto é saúde. Tradições familiares e tratamentos alternativos, quase sempre bem intencionados, foram os primeiros a desafiar a ciência e serem espalhados como opções que pudessem substituir indicações médicas. Hoje, grupos organizados, como o movimento anti-vacina, militam contra evidências científicas e profissionais de saúde, fortalecendo ainda mais a descrença na ciência.

Os especialistas pedem cautela, não descartam a eficácia de tratamentos alternativos sérios, mas reiteram a importância de se separar o joio do trigo. “É preciso primeiro verificar que tipo de terapia está falando. No caso da ozonioterapia, não é alternativa, porque não é uma coisa que pode se usar a exemplo de uma homeopatia, que não tem comprovação científica, mas é aprovada pelo CFM ou acupuntura, que tem comprovação e aprovação do conselho. A terapia com ozônio não é nem reconhecida, portanto é considerada charlatanismo”, pondera Lichtenstein, em referência a um tratamento que ganhou visibilidade durante a pandemia depois que o prefeito de Itajaí (SC), Volnei Morastoni (MDB), anunciou que a cidade faria parte de um estudo para avaliar a eficácia da ozonioterapia pela via retal no tratamento da covid-19.

 



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