Dois anos após o naufrágio da lancha Cavalo Marinho I, que deixou 19 mortos na Baía de Todos-os-Santos, na região de Vera Cruz, a família de uma das sobreviventes, que morreu um ano depois do acidente, luta para que ela seja reconhecida como a 20ª vítima da tragédia.
Adailma Santana Gomes, de 27 anos, foi acometida por uma depressão depois do estresse pós-traumático, que é o distúrbio caracterizado pela dificuldade em se recuperar, depois de vivenciar um acontecimento violento e/ou impactante – no caso dela, o naufrágio da lancha Cavalo Marinho I –, e cometeu suicídio há cerca de 11 meses.
A tia dela, Eliane de Santana, conta que a empresa responsável pela lancha Cavalo Marinho I, a CL Transportes Marítimos, nunca prestou nenhum tipo de assistência à família.
“Não houve apoio à família, indenização, nada. O advogado está correndo atrás [para incluir Adailma na lista de vítimas], mas até agora nada. A gente não queria nem indenização de nada, a gente queria só ela de volta. Mas que a justiça seja feita. A gente está lutando e vai lutar com fé em Deus, para que a justiça seja feita”.
“Eles têm que arcar com a responsabilidade. Não é pelo dinheiro, é para não ficar impune. É para não ser em vão, sabendo que a culpa é deles” , disse Eliane Santana
O G1 tentou contato com a empresa CL Transportes, responsável pela lancha Cavalo Marinho I, por telefone e por e-mail, mas não obteve respostas.
Conhecida como “Dai”, Adailma deixou uma filha, que hoje tem 5 anos, e o marido – o português Luís Filipe Marques, que está no Brasil há 24 anos.
Eliana de Santana fala sobre o processo de tentar incluir a sobrinha como a 20ª vítima do acidente com a lancha Cavalo Marinho I — Foto: Reprodução/TV Bahia
A jovem completaria 28 anos no dia 15 deste mês. Antes de ter a vida interrompida em decorrência da tragédia, Eliane lembra dos planos de crescimento da sobrinha.
“Ela estava fazendo curso para trabalhar e dar o melhor à filha dela, mas só que essa tragédia não deixou minha sobrinha concluir o que ela queria de verdade. Alguém vai ter que pagar por isso. A Justiça vai ter que cobrar, ela tarda mas não falha. Demora, mas eles [empresários] vão ter que pagar tudo o que devem. A vida desse povo da lancha [CL Transporte] é ganhar. Eles só querem ganhar dinheiro, sem saber o que a gente passa no meio do mar”.
“Eles estão curtindo e a gente aqui sofrendo, perdendo a alegria que a gente tinha, mas eles continuam sorrindo. Nada vai trazer minha sobrinha de volta, mas eu espero que a justiça seja feita”, disse Eliane Santana.
Acompanhamento psicológico
Adailma chegou a ter acompanhamento psicológico por um ano e foi medicada em um determinado período. Do estresse pós-traumático veio a depressão, e ela não resistiu às lembranças do que viveu na manhã de 24 de agosto de 2017.
“Ela dizia para a gente que foi um desespero, que ela pensou de não sobreviver, porque ela estava lá embaixo [convés inferior da embarcação]. Quando ela saiu nadando, tentando se salvar e salvar o povo também, foi um desespero muito grande”, relata.
“Depois disso, minha sobrinha não foi mais a mesma. Ela era muito feliz, fazia festa por tudo. Depois acabou a felicidade da minha sobrinha. Se não fosse isso, minha sobrinha estaria aqui”, lamenta Eliane Santana.
O marido de Adailma lembra que o acompanhamento com um profissional da saúde mental era tortuoso.
“Ela tentou recuperar a sanidade, mas quebrava o tratamento, interrompia e aí começou a agonizar mais. Até que chegou um ponto que foi incontrolável. Ela perdeu a noção do futuro, para ela a vida tinha caráter imediatista, [dizia] que podia morrer a qualquer momento, teve confusão mental”, lembra Luís Filipe.
Luís Filipe conta que a esposa mudou de comportamento depois do trauma sofrido com o naufrágio da lancha — Foto: Reprodução/TV Bahia
O trauma foi tão impactante para a jovem, que ela mudou drasticamente de comportamento depois do naufrágio da embarcação.
“Depois da tragédia, ela ficava estressada. Brigava com o irmão dela. Qualquer coisa para ela era um estresse. Tudo era gritando, com nervoso. E tudo isso foi depois do acidente. Antes disso, ela era uma pessoa feliz. Depois da tragédia acabou tudo. Antes de fazer dois anos [do naufrágio], ela fez essa tragédia com ela também”, disse.
“As lembranças são muito grandes. Pense em todo dia você acordar e não ver uma pessoa que você ama? Todo dia saber que ela passou por essa tragédia tão grande?”, relembra Eliane Santana.
A psicóloga Niliane Brito explica que a mudança de comportamento é um dos sintomas do estresse pós-traumático, porque a pessoa tende a recordar do fato várias vezes, com as mesmas sensações físicas e emocionais que viveu no momento do choque.
“É importante ficar atento ao comportamento após o trauma, como perda de apetite, agressividade, sono irregular, à mudança de comportamento dessa pessoa, porque sempre que ela revive esse movimento traumático, acentua os sintomas”, pondera Niliane.
Filha
Com a perda de Adailma, Luís Filipe cria a filha do casal sozinho — Foto: Reprodução/TV Bahia
Além de ter que conviver com a dor da perda da jovem, o marido de Adailma e a família dela tiveram outra dificuldade: contar à filha que a mãe não voltaria mais para casa.
“É uma falta difícil de superar. No aniversário dela [Adailma], ela [a filha] disse: ‘Tem todo mundo aqui, minha tia. Só falta minha mãe’. Eu não tive nem palavras para dizer a ela, porque ela ainda não entende. Então fica difícil. O pai dela diz que ela está no céu, que uma estrela está olhando para ela, mas é difícil”, lembrou a tia Eliane.
Luís Filipe foi o responsável por levar a verdade para a filha. Por se tratar de uma criança que, na época da tragédia tinha completado quatro anos, ele resolveu tratar do caso com delicadeza.
“Num primeiro momento, contei a verdade para ela, que a mãe tinha morrido. Não explicando exatamente os detalhes da morte, obviamente, para uma criança de quatro anos poder entender. Então falei que a mãe estava no céu, que era uma estrelinha, todas essas questões. E disse que realmente a mãe gosta dela e que está cuidando dela e olhando por ela”.
“De vez em quando, como qualquer criança, ela sente saudades da mãe. Essa semana falou: ‘Papai, eu senti o cheiro da mamãe’ . É muito difícil ter que explicar a uma criança que a mãe dela não volta mais”, conta Luís Filipe.
*G1