Primeiro longa de Lázaro, ‘Medida Provisória’ discute racismo em Brasil distópico próximo do real

Foto: reprodução

A história de ‘Medida Provisória’ já existe há mais de 10 anos. O primeiro longa de Lázaro Ramos como diretor, é baseado na peça ‘Namíbia Não’, escrita pelo baiano Aldri Anunciação em 2010 e que subiu aos palcos pela primeira vez no ano seguinte, já com direção de Lázaro também no teatro.

Desde lá, a ideia de que levar a história para as telas já começou a tomar forma, mas só vai virar realidade daqui há uma semana, em 14 de abril. O longa conta a história de um Brasil distópico, na qual uma medida provisória obriga pessoas negras — ou ‘de melanina acentuada’ como diz o roteiro —  a voltar para a África, como forma de reparação pela exploração causada pela época da escravidão. A ideia absurda é o ponto de partida da história, que mostra como a determinação afeta a vida dos protagonistas: a médica Capitu (Taís Araújo), o advogado Antonio (o britânico Alfred Enoch) e o jornalista André (Seu Jorge) ,que vivem juntos em um mesmo apartamento.

O que poderia parecer algo distante e limitado à ficção chegou, nos dez anos que separam a escrita do roteiro à estreia do filme, cada vez mais perto da realidade. É o que acredita Lázaro Ramos. “Falamos de coisas que não gostaríamos que acontecessem. Mas o roteiro foi escrito há dez anos e algumas coisas realmente aconteceram na vida real. São muitos alertas sobre coisas que se tornaram realidade”, disse durante coletiva de lançamento do filme, realizada com a presença da equipe em Salvador.

Autor da peça, e também intérprete do guerrilheiro Ivan no filme, Aldri Anunciação lembra de um exemplo clássico.

“A peça, desde quando foi escrita, já tem o André dizendo ‘Eu não consigo respirar’ e nós assistimos George Floyd morrer dizendo a mesma coisa. É só um exemplo de como as situações da peça foram se aproximando da realidade, se tornando possíveis”, diz, citando o caso da morte do americano, em 2020, que repercutiu por todo o mundo.

Para o autor, que também fez parte da equipe de roteiro do filme, o diferencial do longa é poder expandir o olhar do espectador, que no teatro conhecia apenas o apartamento dos primos André e Antônio.

“Na peça a gente não mostra quem fez, quem são essas pessoas que determinam a lei, que legislam, criar um pouco esse cenário tem um pouco de revelar, de dar nomes, de mostrar essas feguras que exigem que os negros voltem para a Africa. De onde vem esse tipo de ideia”, detalha.

Equipe preta

Quem assiste a medida provisória logo percebe: a grande maioria dos atores em cena é negra. Para além dos protagonistas, apenas nas cenas em que é mostrado o Afrobunk – uma espécie de releitura dos quilombos – 33 atores negros preenchem a tela. Ao todo, somando elenco e equipe, o número ultrapassa a casa dos 100.

Uma dessas atrizes é a jornalista Maíra Azevedo, a Tia Má, que fez sua estreia na atuação atendendo ao convite do amigo Lázaro Ramos.

“Me lembro da emoção de entrar no set, de ver aquela quantidade de profissionais pretos. Esse filme serve para mostrar que a gente existe, e que sabe fazer bem feito. Nunca mais vão dizer que não contratam porque não conhecem quem são esses profissionais. Quem não contratar agora é porque não quer”, diz a intérprete da personagem Dina.

Para além dos bastidores, a própria história é construída para falar do racismo, mas explora o tema de maneira diferente. Lázaro Ramos conta que tomou alguns cuidados, como por exemplo a forma de mostrar armas de fogo na história. O agora diretor falou mais do processo.

“O filme tem que começar com a comédia, com a rotina. Muita gente dizia que o filme tinha que começar já com os negros sendo perseguidos, mas não. O filme começa leve pra gente se aproximar dos personagens. O cinema tem esse costume de só falar da gente animalizado. É preciso mostrar a gente com outras profissões, outros desejos, é uma coisa que o cinema estava devendo ao povo preto”, defende.

Protagonista do longa, o ator inglês. Alfred Enoch, destaca a importância de poder falar de assuntos tão importantes com o seu trabalho. Para o artista, que é filho de mãe brasileira, e bastante conhecido do público jovem por sua atuação nos filmes de Harry Potter e na série ‘How to Get Away with Murder’ a juventude tem se engajado cada vez mais em discutir assuntos importantes como os abordados no filme.

“Abordar assuntos que são difíceis de abordar, nem sempre é algo que tem gente com vontade de fazer, mas essa é uma sociedade em que temos que participar. A gente precisa se perguntar o que a gente pode construir juntos. E essa é uma pergunta que o filme provoca, e que é muito importante em um ano como este de eleições no Brasil”, afirma.

Censura

Se o processo de construção do filme foi demorado e encontrou, inclusive, uma pandemia pelo caminho, o último obstáculo foi de censura velada sofrida pela obra por parte da Agência Nacional do Cinema  (Ancine) que demorou cerca de um ano para assinar um documento que permitia que a equipe do longa mudasse de distribuidora.

“O filme foi feito da maneira mais responsável que se tem que fazer um filme. As questões financeiras estavam todas bem e não se tinha o porquê de não liberar. A gente precisava apenas de uma assinatura para trocar de uma distribuidora por outra, mas essa assinatura demorou mais de um ano. Ela veio em uma sexta-feira, às 18h30 da tarde, um dia em que Brasília trabalha muito, depois da imprensa publicar a suspeita de censura. A censura se faz também através da burocracia”, declarou o diretor.

Com o filme nas telas, Lázaro comemora. “Estamos vivendo uma tragédia. Felizmente o filme está aqui e mostra que a arte é soberana, sempre vai dar um jeito de existir. Essa perseguição ideológica, que tem a produção cultural, não faz sentido. O filme está ai para falar que a gente precisa pensar bem nas nossas escolhas”, afirmou.

Se todos os desafios não foram suficientes, agora ‘Medida Provisória’ quer se manter por mais tempo em cartaz, mas precisa enfrentar como concorrente na estreia justamente o novo filme da franquia Harry Potter e de outros títulos de peso. Para seguir na sala de cinema, o ator faz um apelo ao público “Venham. Venham ao cinema logo na primeira semana. Nós vamos estrear em uma semana difícil. Com dois grandes filmes estreando junto com a gente. É importante que o púbico vá logo na semana de estreia, pra que o boca a boca faça a gente durar mais tempo nos cinemas”, pede Lázaro.

Também estavam na apresentação do filme à imprensa Elísio Lopes Jr, roteirista do filme; Claudia Bejarano, produtora do longa; e Sabrina Nudeliman Wagon, da distribuidora Elo Company. À noite, houve duas sessões para convidados

Fonte: Metro 1



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