A notícia do resgate de 300 vendedores ambulantes que trabalharam em condições análogas à escravidão durante o Carnaval de Salvador não tem a mesma repercussão que tantas outras informações da festa, como por exemplo a do faturamento de R$1,8bi que foi potencializado pela visita de cerca de 3,5 milhões de turistas de todo o mundo, segundo informações da Prefeitura de Salvador. O “racismo nosso de cada dia” não choca, não surpreende e não é capaz de abafar o eco da folia porque os corpos vitimados por ele não conseguem sensibilizar uma população que se acostumou a conviver com os resquícios da escravidão nos ambientes doméstico, de trabalho e lazer.

Segundo o prefeito Bruno Reis, mais de 250 mil empregos foram gerados durante o Carnaval: “Todo mundo trabalhou, ganhou seu dinheirinho”, disse ele. Sob quais condições, não importa. A declaração foi feita durante coletiva de imprensa ainda na Quarta-feira de Cinzas. Na mesma ocasião, a vice-prefeita e secretária municipal de Cultura e Turismo (Secult), Ana Paula Matos, celebrou: “É Salvador mostrando para o mundo como é que se faz festa, com acolhimento, com cuidado com os trabalhadores, com os ambulantes, com os recicladores, com as crianças, com todas as pessoas”. Não foram essas as informações detalhadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Os dados apresentados pelos auditores fiscais mostram que os trabalhadores foram submetidos a jornadas exaustivas, sem condições de higiene mínima nos banheiros completamente sujos e compartilhados com os foliões. Além disso, não contaram com locais adequados para dormir, sendo obrigados a descansar em barracas ou expostos a sujeira e variações climáticas em papelões no chão, sem qualquer tipo de segurança. Nenhuma novidade para quem conhece minimamente a estrutura da festa. Este é o problema.
Naturalizar este quadro é um dos aspectos que mostram a complexidade das práticas racistas numa sociedade formada majoritariamente por pessoas negras. Segundo dados do IBGE, 55,5% dos brasileiros se autodeclararam pretos ou pardos no último Censo realizado em 2022. A autodeclaração não é suficiente para promover solidariedade racial, mas, diferente do que se possa imaginar, não há contradição.
Somos forjados por instituições que alimentam valores racistas desde a forma como interpretamos nossa cor até a maneira como devemos lidar com nossos pares. Apesar de estarmos em um momento histórico significativo do ponto de vista da desconstrução de ideais racistas em diversas áreas, os estigmas que foram insistentemente atribuídos a pele negra e outras características raciais ainda reverberam no imaginário popular e são convertidos em ações danosas. Neste ponto, é preciso reconhecer que não podemos apenas responsabilizar a sociedade enquanto estrutura. É necessário que haja também uma reflexão individual sobre qual responsabilidade nos cabe na alimentação de um sistema que continua reservando para corpos negros um lugar de violência e exclusão.
A situação dos ambulantes no Carnaval não é muito diferente da situação das trabalhadoras que recebem valores mínimos por faxinas, lavagem de roupas, cuidado com crianças e outras demandas domésticas. Explorar a capacidade de trabalho destas profissionais, que são majoritariamente negras, contribui para a consolidação do racismo. Desprezar as condições dos entregadores por aplicativo, porteiros, agentes de limpeza e tantos outros profissionais que, inclusive, nos cercam nos nossos ambientes de trabalho, em funções consideradas ainda mais subalternas, também contribui para o racismo. Para estes corpos negros são destinados lugares de inferioridade que nós, quando nos comportamos de forma omissa, contribuímos para a manutenção de um sistema convenientemente negligente e racista.
Enquanto não houver o entendimento de que o enfrentamento ao racismo depende de ações que precisam ser discutidas e postas em prática coletivamente, desde o ambiente doméstico até as ruas, pelas instituições e pelos sujeitos, denúncias, como a feita pelo Ministério Público, continuarão se somando a tantas outras, sem que tenham um impacto efetivo de extinção do preconceito racial e todas as violências que o acompanham.