De doméstica a poetisa: ‘Nunca mais vou limpar chão em casa de patroa’

Ainda menina pequena lá em Minas Gerais, Tula Pilar Ferreira, 46, descobriu o prazer da leitura driblando as patroas e deixando a vassoura de lado para se deliciar com os livros das bibliotecas de famílias para as quais trabalhava.

“Eu lia muito nas casas das patroas, tudo o que se pode imaginar. As coleções de Walt Disney, Monteiro Lobato”, recorda-se a ex-empregada doméstica.

Nos saraus da vida
Há uns 15 anos, ela transformou a poesia em ganha-pão e passaporte para um mundo muito além do claustrofóbico quartinho dos fundos a que estava destinada.

Nos versos de “Sou uma Carolina”, em homenagem à poeta Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a ex-catadora de lixo que virou escritora, Tula narra como tudo começou.

Sou uma Carolina/ Trabalhei desde menina/ Na infância lavei, passei, engraxei/ Filhos dos outros embalei

Em boa parte da infância e da adolescência vividas em Belo Horizonte, a futura poeta nascida em Leopoldina (MG) encontrou na literatura o escape da dura rotina de trabalhadora mirim, único atalho possível para fora da favela e rumo à escola.

“Quando eu tinha uns 7 anos, eu e minha irmã mais velha fomos para uma casa de família, onde a gente ia brincar com as crianças em troca de roupa, comida e escola. Diziam que íamos ser da família, mas assim que nossa mãe dava as costas trabalhávamos horrores.”

A narrativa de tantas outras meninas pobres começa a fugir do script quando Tula e a irmã passam a se sobressair na sala de aula, tirando notas mais altas do que a dos filhos dos patrões.

“A gente estudava na mesma escola pública e a nossa patroa perguntava pra minha mãe: ‘Como pode?’, indignada com o fato de as crias de uma favelada tivessem um melhor desempenho escolar que as dela.”

Orgulhosa de suas “meninas inteligentes”, a mãe de Tula não respondia nada. “Tem coisa que a gente finge que não é com a gente”, repetia ela para as duas filhas estudiosas.

VARRER A HUMILHAÇÃO

Tula aprendeu desde cedo a varrer a humilhação para debaixo do tapete. Aos 13 anos, labutando em outra casa de família, ela foi pega com um de seus textos.

A patroa perguntou de quem era. Incrédula com a resposta, continuou a inquisição: “De onde você tirou essas ideias?” Tula rebateu: “Ué, da minha cabeça”.

Resposta “insolente” que desencadeou a ira da “sinhazinha” urbana. “Ela rasgou o papel, jogou no tapete e disse: ‘Agora, você limpa'”.

O relato é de uma mulher adulta, negra e altiva que, na pele de menina, teve de engolir outras recriminações da dona da casa e da sua força de trabalho: “Dê graças a Deus que te tirei daquela favela. Aqui você tem um quartinho do bom, comida boa. Sou ótima, enquanto você que está aqui para trabalhar fica lendo e escrevendo”.

É outro trecho da vida que também virou poesia.

Eu sou uma Carolina/ Escrevo desde menina/ Meus textos foram rasgados, amassados, pisoteados/ Foram tantos beliscões/ Pelas bandas lá de Minas

Fugi da casa da patroa/ Vassoura não quero mais/ A caneta é meu troféu/ Bordar as palavras no papel/ É tudo o que eu quero dizer

No bordado da escrita, ora baixando a cabeça ora peitando as patroas, Tula reescreveu sua história.

Mudou-se para São Paulo, deixando para trás a primeira filha, que ficou morando com a avó em BH até ela ter condições de trazê-las para perto.

ANTES DA PEC

À medida que Tula ia crescendo, ia aumentando também as tensões nas relações com as patroas, em épocas pré-PEC das Domésticas. “Eu brigava por meus direitos, férias, por melhor salário. Até que não conseguia mais emprego nenhum como doméstica”, diz.

A fama de encrenqueira foi disseminada por uma “patroa muito fina, rica, famosíssima”, como a descreve, sem revelar nome.

“Quando as pessoas ligavam, ela comentava: ‘É uma pretinha boa de serviço, ótima, limpinha, uma graça. Ela não rouba, mas tem um grande defeito: briga, quer direitos. É um tal de querer estudar e sair pra fazer curso”.

Com o filme queimado, virou passadeira e fazia bicos. Época em que Tula tinha como livro de cabeceira “A Cor Púrpura”, romance epistolar da premiada escritora americana Alice Walker.

Uma inspiração que a levou também a frequentar um sarau perto de casa, em um bar em Taboão da Serra, bairro onde mora até hoje.

Ela narra o que o Sarau do Binho, um dos mais tradicionais da periferia de São Paulo, significou na sua trajetória.

“Abriu-se um outro mundo pra mim. Comecei a vender poesia na rua e a ganhar dinheiro com as coisas que eu escrevia, que eram polêmicas, mas as pessoas gostavam muito.”

Tula se destacou declamando a “Poesia da Cachaça”, fazendo troça com a “mardita”. Seu palavreado sensual também chamou a atenção.

“Fiquei famosa com as minhas poesias. As pessoas queriam saber: ‘Quem é essa negra que fala de espaço peludo, seios fartos, o que é isso?'”

Passou a dar entrevistas, acenderam-se os holofotes. Momento também registrado em versos.

Sou a negra escritora que virou notícia nos jornais/ Sai dos Quartos de Despejo para os programas de TV

Com sua verve e seu sorriso largo, Tula costuma brilhar na primeira segunda-feira de cada mês, quando acontece o Sarau do Binho, ou em apresentações em eventos literários e feiras.

ARTISTA EM TEMPO INTEGRAL

As letras ganharam música e a arte virou ofício em tempo integral. Tula passou a sustentar os três filhos com a venda de poesia, suas e de outros.

Ela saca da mochila livros de poemas, como a “Antologia II” do Sarau do Binho. Lá na página 184 está “Sou uma Carolina”.

Oferece também exemplares da revista “Ocas”, onde primeiro foi publicada, voltada a moradores em situação de rua e de vulnerabilidade social.

Naquelas páginas, começava a ganhar visibilidade como “poeta de rua”, não exatamente como moradora, mas como artista que encontrou nas esquinas um palco.

Tula criou um coletivo, o Raizarte, e suas performances hoje incluem também números de dança afro e do ventre.

“Comecei a ganhar dinheiro com esse trabalho. E aí falei pra mim mesma: nunca mais na vida vou limpar chão. Nunca mais vou lavar prato em casa de patroa. Sou escritora.”

Seu nome está lá na capa de “Palavras Inacadêmicas”, livreto lançado há alguns anos. “Está esgotadíssimo. Foram vendidos uns 1.800 livros. Os primeiros custavam R$ 7. Depois, consegui uma outra gráfica e passei a vender a R$ 10. Era fazer e vendia.”

O poema mais famoso de Tula é uma homenagem à poeta Carolina Maria de Jesus, inspiração e espelho.

“Ela também era negra e favelada. Andava descalça, passava fome. Descobri o trabalho dela e pensei: ‘Eu sou ela, eu sou essa mulher’. Aí bolei uma performance”, explica. “Essa Carolina virou um blues. Além de declamar, eu também canto e danço.”

É quando a poeta se veste de catadora, que também já foi, e faz um paralelo entre sua vida e a da autora de “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, publicado em 1960.

“Eu comparo a vida de Carolina de Jesus com a minha. Nós tivemos três filhos e criamos eles sozinhas. A diferença é que ela passa fome enquanto adulta e eu, criança. O mesmo tipo de fome. De revirar o lixo. Catar frango podre e levar pra minha tia cozinhar. Eu não tenho vergonha de falar.”

Do lixo ao luxo, a poesia já levou Tula a Buenos Aires e tantas outras paragens. Na capital argentina ficou em hotel cinco estrelas e reencontrou a irmã mais velha, que hoje é chef de cozinha e tem um bufê em uma cidadezinha ao sul dos pampas.

“Eu vim da pobreza e hoje vivo esse glamour. Luxo é bacana, mas não é o que me interessa. Quando vou pra Flip [Feira Literária Internacional de Paraty], durmo em barraca e me sinto ótima. Não faço ode à pobreza. Sei me comportar em lugar fino, aprendi na casa das patroas, mas gosto de simplicidade.”

Um sabor que se espalha pelos versos que encerram o poema “Sou uma Carolina”.

Sou uma Carolina/ Feminina e poesia/ Pobreza não quero mais/ A caneta é meu troféu/ Bordar as palavras no papel/ É tudo o que eu quero dizer.

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