Santoantoniense é uma das entrevistadas em matéria da Marie Claire sobre ‘A cor e a classe social do assédio sexual no Brasil’

“60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras. Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros. A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”, anunciava o verso inicial da canção Capítulo 4, Versículo 3, lançada em 1997 pelos Racionais Mc’s.

Em 2021, uma mulher negra poderia fazer uma releitura própria e igualmente alarmante desse rap. As estatísticas poderiam ser: em 2020, 61,8% das vítimas de feminicídio eram negras. Entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9% – e de mulheres não negras, 4,5%. Entre 2017 e 2018, 51% das mulheres vítimas de estupro eram negras.

De acordo com dados de 2019, das mulheres que sofrem mais assédio 40,5% são pretas; 36,7%, pardas; e 34,9%, brancas. Das mulheres mais agredidas na rua 32% são negras; e 23%, brancas. Entre as que procuram menos os órgãos oficiais para denunciar 21% são negras; e 25% são brancas.

Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021 e do relatório Violência Contra Negros e Negras no Brasil de 2019, produzidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Para Sandra Ornellas, diretora do Departamento Geral de Atendimento à Mulher da Polícia Civil do Rio de Janeiro, esses dados validam a prática, o dia a dia do que é visto nas delegacias cariocas, e a pesquisa. “No Estado, temos o Dossiê da Mulher, e vemos reiteradamente que quase 80% [das vítimas de violência, incluindo sexual] são mulheres negras [pretas e pardas] e pobres. A colonização e a escravidão, assim como o patriarcado deixaram marcas, e elas permanecem fortes”, afirma.

As mulheres estão morrendo mais, em taxas desiguais, assim como também é diferente o caminho que brancas e negras percorrem ao sofrer assédio, ameaça e violência. “Aquelas que têm poder aquisitivo maior ou uma posição social se envergonham de procurar ajuda [na delegacia da mulher ou em qualquer outra]. Elas buscam um advogado, um psicólogo, e tentam resolver. Enxergam a possibilidade de que o registro deixe uma pecha de vítima, as inviabilizem no trabalho. Já as mulheres mais humildes têm dificuldade de acessar outros serviços, por isso procuram mais os órgãos públicos”, explica a delegada.

Da denúncia à solução

Na percepção da antropóloga Jade Alcântara Lobo, autora do livro Racismo e Patriarcado como Sistema Internacional, existe uma intersecção perversa que ajuda a entender porque as mulheres negras seguem como as maiores vítimas de assédio e violência. Elas foram historicamente tratadas como objetos para o trabalho e o sexo. “Eram corpos que podiam ser tocados por qualquer um. O que estava colocado é que a mulher não era dona de si. Ela precisava ser domada por um dono. E somos vistas [Jade é negra] até hoje como menos que sujeitos. Somos olhadas e tocadas mesmo quando reprimimos essas atitudes”, aponta.

“Some-se a isso a hiperssexualização da mulher negra nas mídias. Por fim, temos um sistema de justiça que não leva a sério todos os casos e denúncias, não existe retaliação [a quem comete] e as negras, muitas vezes, são desacreditadas ou estereotipadas como ‘mulher de bandido’.”

A própria pesquisadora sofreu assédio, inclusive dentro da universidade. “Já fui vítima diversas vezes, é difícil escolher um episódio para falar. Mas havia um professor que me expunha constantemente na sala de aula como se eu precisasse de notas e, paralelamente, me convidava para sair. Esse tipo de dinâmica é comum nas relações de poder. Eu era uma estudante negra vinda do interior da Bahia, e estava sozinha no Sul do país.”

Entre tantas diferenças algo ainda permanece comum entre as mulheres, independentemente da raça: o assédio, dada a normalização, não é percebido como violência sempre que ocorre. Felizmente, temos alguns sinônimos da palavra ganhando a cultura e o nosso vocabulário – os termos abusivo e tóxico, por exemplo –, o que ajuda a nomear o problema e a enfrentá-lo.

“Normalmente, quando a gente percebe uma situação abusiva, que é um sinônimo da expressão assédio, a mulher que denuncia já sofreu ameaça ou violência física. Mas é cada vez maior o número de mulheres que procuram a delegacia já na primeira ocorrência de injúria ou de xingamento, crimes que têm penas menores e muitas vezes não são considerados”, conta a delegada Sandra Ornellas.

São passos tímidos e, às vezes, parece que retrocedemos 50 anos em um minuto. Ela própria se lembra de uma reunião recente em Brasília, em novembro de 2021, com representantes estratégicos de todos os Estados. O foco era a Lei Maria da Penha, e um dos homens presentes se saiu com a frase: “vou fazer um discurso curto e justo como uma minissaia”. “Eu e muitas colegas saímos da sala depois dessa fala. Outros tantos riram. Riram porque não estão acostumados a atender uma vítima, não sabem como isso é complicado na vida de uma menina e perpassa todas as idades. Quem não vive o dia a dia entende a temática como bobagem. Apesar do nosso trabalho diuturno, a gente não consegue mudar isso.”

Punir não é suficiente

“As leis para enfrentamento da violência contra mulheres no Brasil são voltadas para a punição do agressor, punição que, muitas vezes, não acontece por causa da estrutura patriarcal que ainda predomina em nosso país”, avalia a doutoranda em Linguística Nadia de Jesus Santos, que pesquisa, na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), os discursos que englobam as mulheres.

Nádia, que já foi redatora do Blog do Valente, destaca que “o investimento deve ser em políticas públicas educacionais que retirem o corpo da mulher do lugar de objeto. Punir os agressores não é suficiente, precisamos evitar novas vítimas.”

A antropóloga Jade Lobo vai na mesma linha: “O sistema de justiça sempre vai ser racista. Não acredito nele como meio, até porque quando [a denúncia] chega ao sistema judicial, o evento já ocorreu. É o ensino que traz efeitos concretos e imediatos”.

A delegada Sandra Ornellas vê com otimismo as novas gerações. “Tenho um jovem de 19 anos em casa, e a postura dele já é muito mais crítica. Felizmente, existe desde junho uma lei que obriga a tratar da violência contra a mulher em todos os níveis de escolaridade, de maneira transversal – ou seja, na aula de matemática, de história, de língua portuguesa. E, desde a Lei do Feminicídio, existe uma visibilidade maior para o problema. Ficou mais claro que mulheres morrem por ser mulheres.”



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