De R$ 398 bi contra Covid, 86% são para salvar economia que agoniza

Declarações do presidente Jair Bolsonaro como “está havendo uma histeria”, “não sou coveiro” e “e daí?” se entrelaçam ao avanço da Covid-19 e à agonia da economia. O socorro tarda a surtir efeito.  Apesar da resistência do presidente em aceitar os impactos da pandemia, coube a Bolsonaro assinar as principais iniciativas para barrar os danos do novo coronavírus. Os sinais seguem trocados até hoje.  O governo já liberou ao menos R$ 398 bilhões. Do total, R$ 342 bilhões (86%) foram para salvar a atividade econômica que, ainda assim, sucumbe.

A saúde ganhou ao menos R$ 52,5 bilhões —ou 13% do total. Outras pastas receberam no mínimo R$ 3,5 bilhões —1% dos recursos federais.  Os números foram levantados pela Folha com base em informações do site do Palácio do Planalto. A Casa Civil compila os atos normativos publicados no DOU (Diário Oficial da União).  Foram consultados medidas provisórias, leis, decretos, portarias, instruções normativas, entre outros.

O primeiro ato normativo publicado no DOU data de 4 de fevereiro. Trata-se de uma portaria do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde), na qual ele declarou a emergência em saúde pública.  De lá até esta sexta-feira (26), foram 367 medidas. A maior parte delas se refere à economia (161). Saúde vem na sequência, com 97 atos editados.

De todas as medidas, 97 delas têm mais força normativa. São 1 emenda à Constituição, 11 leis, 51 medidas provisórias, 32 decretos, 1 decreto legislativo e 1 ato conjunto do Congresso. Embora tenha politizado a pandemia, Bolsonaro chancelou MPs, leis e decretos.

O primeiro caso de Covid-19 no Brasil foi registrado em 25 de fevereiro. E lá se vão quatro meses de crise. Poucos dias depois, em 11 de março, a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou a pandemia. A primeira morte no país foi registrada cinco dias depois.

As declarações de Bolsonaro minimizavam os perigos da doença. “Está havendo uma histeria”, disse, em entrevista à Rádio Bandeirantes, no mesmo dia em que se registrou o primeiro óbito no país.

O presidente criticava as medidas de isolamento social adotadas por prefeitos e governadores. O ministro Paulo Guedes (Economia), porém, já estava assustado.

Em entrevista à Folha naquele dia, Guedes disse que estudo do BC (Banco Central) sobre a taxa de contágio no país era “alarmante”. O dado, porém, nunca veio a público.

Segundo ele, “o baque do coronavírus” seria temporário. “O contágio sobe rapidamente, fica três meses e depois desaba. A China já está se recuperando.”

Mandetta, no dia seguinte, deu o recado de que seriam “20 semanas muito duras pela frente” —ou seja, cinco meses de penúria, até meados de agosto.

A doença não dá sinal de trégua, tampouco a economia esboça reação. Nesta sexta-feira, eram mais de 56 mil mortes e 1,2 milhão de infectados. Dados do BC de quinta (25) apontam queda do PIB (Produto Interno Bruto) de 6,4% neste ano.

“O discurso do presidente atrapalhou? Sim. Mas, mais do que isso, houve uma falta de coordenação generalizada”, disse Bruno Ottoni, pesquisador líder do IDados e pesquisador do Ibre/FGV.

Alertas não faltaram. Em março, países que estavam à frente do Brasil na pandemia, como Itália e Espanha, já assistiam à explosão de casos e mortes. Os dois países europeus baixaram lockdown e agora reabrem as economias.

“As medidas demoraram a ser desenhadas, até porque a pandemia chegou aqui depois de entrar em outros países”, disse o secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco. Para ele, as medidas emergenciais “foram tomadas apesar de Bolsonaro”.

O Brasil decretou estado de calamidade pública em 20 de março. “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, não”, disse Bolsonaro naquele dia.

O DOU recebeu, então, uma enxurrada de publicações. Foram ordens para fechar agências do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) ou adotar home office em ministérios.

Em março recursos federais começaram a pingar. Porém, foi quase dois meses após a portaria de Mandetta que Guedes entrou em ação com mais dinheiro do Tesouro.

As canetas Bic do ministro e de Bolsonaro trabalharam freneticamente. Em 1º de abril, o governo editou a MP da suspensão do contrato de trabalho e da redução da jornada com corte de salário.

Para complementar a renda de 24,5 milhões de trabalhadores, foram reservados R$ 52 bilhões. Até esta sexta, 11,6 milhões de acordos haviam sido celebrados, e pagos R$ 11,7 bilhões, segundo o Tesouro.

“O governo errou um pouco o timing, mas, em termos de valores e de desenho, o programa foi bem concebido. Não à toa se viu uma adesão maciça. Isso por si só demonstra o sucesso”, afirmou Ottoni.

No dia 2, o governo publicou mais duas medidas. A gestão Bolsonaro liberou para estados e municípios repasses da ordem de R$ 16 bilhões, e foi editada a MP que destinou R$ 98,2 bilhões ao auxílio emergencial de R$ 600.

A iniciativa socorre informais, como ambulantes, que, com o isolamento social, ficaram sem renda. O governo estimava atender até 20 milhões de pessoas, mas 108 milhões solicitaram a ajuda —64,1 milhões foram aprovadas.

Naquele dia, na Rádio Jovem Pan, Bolsonaro pediu fé à nação. “A gente vai com pastores e religiosos anunciar para pedir um dia de jejum ao povo brasileiro em nome de que o Brasil fique livre desse mal o mais rápido possível.”

O programa custa R$ 152,6 bilhões —foram pagos R$ 95,6 bilhões no desembolso das duas primeiras parcelas.

Ottoni destacou como entraves o ceticismo de Bolsonaro, as negociações com o Congresso e os desafios para a execução. Para ele, os efeitos mais profundos no mercado de trabalho serão sentidos em junho, julho e agosto.

O Ministério da Economia afirmou que as ações foram pensadas para apoiar a área de saúde e todos os segmentos. Segundo a pasta, foi necessário aliar a celeridade exigida ao respeito a processos legislativos e orçamentários.

Na avaliação do órgão, é natural a existência de um intervalo entre autorização e pagamento. Afirmou ainda que uma série de políticas vão se alongar no período de calamidade, que acaba no fim do ano.

Dados do Tesouro mostram que, do valor liberado, 44% foram efetivamente gastos. O diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente, órgão ligado ao Senado), Felipe Salto, afirmou que o nível dessa execução ainda é baixo.

Segundo ele, o problema é a ausência de coordenação. “Está faltando acompanhamento na área da saúde para saber se precisa de mais recurso, se o dinheiro está chegando na ponta.”

Em 6 de junho, um mês após a emenda à Constituição do chamado Orçamento de guerra e quatro meses após a primeira portaria sobre Covid-19, o governo publicou a MP com R$ 60 bilhões para socorrer estados e municípios —do montante, R$ 10 bilhões são para a saúde.

Prefeitos e governadores se queixaram da demora. As críticas, para Guedes, são injustas.

No dia 9, em reunião ministerial —ao vivo e sem palavrões—, ele projetou entre R$ 900 bilhões e R$ 1 trilhão os esforços do governo.

Na conta, juntou ações de bancos públicos e do BC, como redução do compulsório. “Naturalmente isso pressiona o Orçamento neste ano, mas nós sabemos que no ano que vem tudo volta ao normal.”

Para Salto, o país terá a atividade econômica fragilizada e um enorme desafio para reorganizar as contas públicas. “Não vejo onde o ministro enxerga essa projeção de recuperação extraordinária. Não há nenhum indício de que isso irá acontecer, ao contrário.”

Já está no fim o auxílio emergencial de R$ 600 por três meses. O governo lançou uma proposta de mais três parcelas (R$ 500, R$ 400 e R$ 300), ao custo de mais R$ 100 bilhões.

Ao anunciar a extensão, na quinta, Guedes estava com o presidente, na live semanal, que disse ver “excesso de preocupação” com a Covid-19.

“Agora são 19 horas e 2 minutos, e nós queremos prestar uma homenagem aí aos que se foram vítimas do coronavírus. Então, vou pedir para o Gilson [Machado, presidente da Embratur] que toque aí a Ave-Maria [na sanfona].”

Fonte: Política Livre



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