A mulher que decidiu enfrentar um câncer agressivo sem tratamento

 

“Saí do hospital de luto pela minha morte. Mas a decisão de abrir mão da cirurgia me deu calma. Estou pronta para morrer. Não estou desistindo. Apenas não quero ficar na vida a qualquer preço.” Aos 61 anos, a professora gaúcha Ana Beatriz Cerisara foi internada para reverter uma colostomia no abdome, técnica usada para eliminação de fezes em uma bolsa, herança de uma cirurgia antiga. O procedimento, contudo, não foi concluído. Ao acordar, Ana Bea, como é carinhosamente conhecida, ouviu do cirurgião  que continuaria dependente do dispositivo, mas esse seria o menor de seus problemas. O médico então lhe entregou um pedacinho de papel dobrado com as palavras que não conseguira pronunciar: ele havia detectado durante a operação três cânceres no intestino, uma condição raríssima pela quantidade de tumores em um mesmo órgão. Quimioterapia, radioterapia ou medicamentos pouco adiantariam. Operá-la seria o  tratamento possível, mas poderia acarretar na retirada quase total do intestino. Nesse caso, ela passaria a se alimentar para o resto da vida por vias artificiais e a absorção dos nutrientes seria drasticamente afetada.

Poucos minutos depois do diagnóstico, Ana Bea tomou para si a decisão que mudaria radicalmente o curso de sua existência, pronta para morrer, sem desistir, mas também sem lutar pela vida a qualquer preço. Reconstruir a vida que não pôde ser é um dos pilares mais extraordinários de uma área da medicina cada vez mais presente nos tratamentos, a dos cuidados paliativos. Ela é regida por profissionais dedicados exclusivamente a minimizar o sofrimento da doença incurável de fim de vida, reduzindo as dores, os sintomas físicos, sim, mas também zelando pelo amparo emocional. Os cuidados paliativos permitem o desabrochar de personalidades como a de Ana Bea, escolhida por VEJA para representar esse novo tempo. Uma das pioneiras nessa modalidade de tratamento foi a médica inglesa Cicely Saunders, na década de 80 do século passado. Ao cuidar de pacientes terminais no St. Christopher´s Hospice, em Londres, ela decidiu criar um centro especializado em atenuar os males. Para nomear sua criação, puxou do latim a expressão pallium, de manto. O manto que agora cobre Ana Bea, e que lhe permite sorrir quando é hora de sorrir, de chorar quando é para chorar. É postura que ecoa uma máxima de Epicuro, de 271 a.C.: “a morte é uma quimera – porque enquanto eu existo, ela não existe e quando ela existe o já não existo nada significa para nós”.

Deixar a doença seguir seu curso sem tratamento daria para Ana Bea, pelos cálculos médicos, até dois anos de sobrevida. Ela deixou o hospital sem dores nem cansaço. O cabelo e a pele brilhavam. O fim estava tão perto e tão distante ao mesmo tempo, ela pensava. Convivia com a contradição de ter um corpo vigoroso e ao mesmo tempo portador de um câncer brutal. A primeira providência foi tentar se cercar de informações sobre casos como o seu, o de pessoas que recusam tratamentos, mas só encontrou algo semelhante em doentes já no leito de morte, em sofrimento. Matriculou-se, então, em um curso recém-aberto na cidade em que mora, Florianópolis, com orientações de como lidar com a dor da perda de pessoas próximas, o Conversas sobre a Morte, do Humana Palavra.

 

*Veja



Veja mais notícias no blogdovalente.com.br e siga o Blog no Google Notícia