“Não somos oposição ao governo do estado”, diz nova chefe do Ministério Público da Bahia

A nova procuradora-geral de Justiça, Norma Cavalcanti, diz que o Ministério Público da Bahia (MP-BA) está “estagnado há dez anos” e promete uma “virada”. Ela nega, porém, fazer oposição ao governo Rui Costa. “Nós dissemos a ele que era uma lista tríplice de oposição às administrações do Ministério Público”, afirma.

Atuante há mais de 20 anos no combate ao tráfico, ela reconhece a dificuldade do Estado em solucionar homicídios e defende a religião como vetor de enfrentamento ao problema. “Eu tenho chamado a todas as religiões para ajudar nesse sentido, dar uma orientação às pessoas humildes, que não têm psicólogo, que não têm outro tipo de tratamento”, diz.

Ex-presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), ela critica a nova lei de abuso de autoridade e considera que o MP já conta com rígidos mecanismos de controle. “O pessoal diz que somos uma classe econômica em aplausos. Cobramos mais de nós mesmos do que de outras pessoas”, afirma.

A nova chefe do Ministério Público baiano também defende o trabalho da Lava Jato e afirma que a operação teve “muito mais acertos do que erros”. “Eles começaram esse trabalho que realmente mudou a face do combate à corrupção”, opina.

Veja, a seguir, a entrevista completa: 

A senhora é apenas a segunda mulher a ser procuradora-geral de Justiça da Bahia. Como enxerga essa questão cultural dentro do Ministério Público e do Estado?

Dentro da minha instituição, não vejo dificuldades para as mulheres. Para mim, o fato de ser mulher nunca foi um impeditivo a que eu me candidatasse, concorresse a um cargo. Já fui presidente da minha associação de classe, a Ampeb, Associação do Ministério Público da Bahia, por três vezes. Sou a única mulher, até hoje, a ter presidido a Associação Nacional do Ministério Público, a Conam, por dois mandatos e um na substituição. E aqui concorri em 2010, sendo a candidata mais votada. Agora, retorno e fiquei honrada com a indicação pelo governador. Como ele disse no discurso, pode ser que um dos fatores para que tenha me escolhido seja em função de eu ser mulher, no mês da mulher. Mas acho que não foi só por ser mulher. Demonstramos nosso compromisso com o Ministério Público, falei ao governador da retidão de caráter que trabalhamos. Tenho orgulho de ser Ministério Público. É uma profissão que me engrandece sempre. Quando fui demitida do serviço público a primeira vez, eu disse que não passaria mais por isso, porque eu exercia cargos comissionados. Decidi estudar e passar num concurso. E o Ministério Público dá essa garantia a nós, promotores e procuradores de Justiça, de exercer o trabalho. Não tem nada mais belo do que defender as leis, a Constituição do Estado, a Constituição Federal. Agora, é uma profissão árdua. Lutamos para que reconhecessem o papel do Ministério Público como ele é hoje. E vejo nós, mulheres lutando em vários estados. Tem estados que ainda não conseguiram colocar uma mulher na sua chefia institucional, mas para mim não foi impeditivo. Concorri com dois colegas, Pedro [Maia] e Alexandre [Cruz], que são dois homens de bem. Sou a mais velha de seis mulheres. Sempre lutamos e nos afirmamos na sociedade como pessoas iguais aos homens. A gente sabe que, em determinadas profissões, existem essas desigualdades. Mas, na minha profissão, ganhamos igual, todos concorrem a promoções.

Durante a posse, o governador disse em determinado momento que buscava um olhar mais maternal no Ministério Público. Ele chegou a expressar isso quando conversou com a senhora?

A conversa com o governador foi republicana, muito amplamente sobre o que é o Ministério Público, as relações com o Ministério Público e a sociedade. Nós, da lista tríplice, dissemos que não éramos oposição a ele, era uma lista de oposição às administrações do Ministério Público. Sempre fizemos oposição assim: sem falar de pessoas, mas de projetos. Nós tínhamos um novo projeto para o Ministério Público, mas não era nada contra ele. Fizemos a lista tríplice porque nós achávamos que, se entrasse um dos candidatos que a administração sinalizava, ele [Rui Costa] escolheria. Ele deu risada. A mim ele disse: ‘vou continuar com uma mulher na presidência’. Ele disse que fui uma pessoa direta, não titubeei em responder o que foi perguntado. Tenho 28 anos de Ministério Público, sou mais velha do que os outros dois concorrentes. Acho que, na soma, não foi só por eu ser mulher. Mas, se ele tivesse escolhido qualquer um dos outros candidatos, teria o meu apoio e engajamento para que o nosso projeto, que era único, desse certo.

O que representa esse novo projeto? Quais são as principais metas?

A gente sempre foca no interesse público, no que a sociedade precisa. Trabalhar com determinação, sem politicagem. Com base na Constituição, na higidez do patrimônio público, trabalhar pela proteção do meio ambiente, pelas crianças e adolescentes. Como mulher, aí sim, vou trabalhar com toda a minha equipe para reduzir o que é um dano realmente, a nova face de crimes contras as mulheres. Esse trabalho eu acho que tenho mais do que a obrigação de lutar para que seja reduzida, e muito, esta situação, que não é só da Bahia, mas do Brasil, em todas as classes sociais. Acho que temos que proteger também com soluções as crianças e adolescentes. Eu sou promotora de entorpecentes. O tráfico tem captado adolescentes, as pessoas têm morrido até os 22 anos. Não digo que é uma guerra civil, mas estamos em uma batalha inglória. Começamos um processo hoje, quanto notamos daqui a três meses a pessoa não está mais viva. É muito difícil essa situação. Isso eu relatei na minha primeira conversa com o governador.

Como avalia a ação do Estado em relação ao tráfico?

O Estado sozinho não vencerá. A sociedade também tem que ter a sua parcela, o próprio Congresso Nacional. Já se reduziu várias tipos de pena, há esse debate pela descriminalização ou não das drogas. O tráfico de drogas é cativante para o adolescente. O dano para toda a família é quase permanente. Se ele perde a droga e não paga, a família vai pagar. Se não pagar, morre. Eu tenho chamado a todas as religiões para ajudar nesse sentido, dar uma orientação às pessoas humildes, que não têm psicólogo, que não têm outro tipo de tratamento. Acho que pode haver um investimento do Estado nessa parte de uma justiça restaurativa para o usuário. Muitas vezes, fica aquele dúvida de quem é usuário e de quem é um pequeno traficante. As facções criminosas têm mapeado Salvador. Não só Salvador, mas cidades pequenas, de 10 a 15 mil habitantes. Hoje, as pessoas são presas com pouca quantidade. Ninguém entrega muita quantidade mais. Nós vamos fazer esse levantamento das facções, mapeado por bairro. Eu sou promotora de entorpecentes desde 2002. A gente passou pela fase de Ravengar…o tráfico é assim: cai um, vem outro logo em seguida. Hoje, os crimes todos têm relacionamento com o tráfico de drogas. Salvador apresenta um grande número de homicídios. Não conseguimos apurar um grande número de crimes bárbaros.

Quanto se consegue solucionar dos homicídios?

Ainda não tenho esse dado recente, mas sei que não é muito em relação ao que nós queríamos que fosse. A prova técnica já melhorou muito, mas temos que avançar. O número de homicídios é muito maior do que vai a julgamento. A gente corre para que não prescreva, para que aquele fato não morra.

Mesmo sem ser uma atribuição do Ministério Público, a senhora imagina que a grande questão seja o debate em torno da descriminalização?

Nem tanto. Não é uma coisa fácil. Em países como a Holanda, onde ocorreu [a descriminalização], os resultados já não são mais seguros. Se eu fosse me posicionar hoje, não tenho certeza se seria a favor da descriminalização. É muito difícil falar sobre os efeitos das drogas. A maioria dos cientistas diz que há danos ao cérebro dos jovens até com a maconha. Mas outros cientistas acham que deve ser [descriminalizado]. A nossa questão é saber o que é tráfico e o que é consumo.

A senhora acha que a religião é um vetor que deve ser fortalecido, então?

Sim. Qualquer religião. Com a religião, você busca um emprego, uma formação.

Aqui existe a Fundação Dr. Jesus, do deputado Sargento Isidório…

Conheço, mas não visitei ainda. Quando geralmente ele [o usuário] nos traz um comprovante de que já visitou essa instituição do deputado, por exemplo, é uma desclassificação de uma conduta de tráfico para uso. Várias igrejas, pastores, a Igreja Católica…a Pastoral Carcerária tem um papel grande dentro dos presídios. Mas também tem a parte do Estado, o terceiro setor.

Como está o orçamento do Ministério Público? O que está destinado será suficiente para tocar as ações até o final do ano?

Nunca é suficiente. O nosso conforto é que, comparado aos Poderes do Estado, temos ainda um equilíbrio financeiro. Nunca ultrapassamos o limite prudencial da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ainda estamos analisando, mas acreditamos que não chega até o final do ano sem uma suplementação orçamentária. Ainda não temos todos esses dados na mão. Entrou um novo concurso, não sabemos ainda quando poderemos chamar uma segunda etapa. A grande dificuldade do gestor é essa: administrar com higidez o patrimônio público. Nós ainda temos essa responsabilidade maior, por sermos fiscais da lei. Nosso número de servidores não é grande. A gente vem fazendo aos poucos os concursos.

Os outros dois integrantes da lista tríplice foram nomeados para o seu gabinete. Existia essa ideia de que vocês trabalhariam juntos, independentemente de quem fosse indicado pelo governador?

Sim, essa era a proposta, assim como a mudança nos cargos da administração, todos os cargos de chefia. Servidores, não. Vamos observar aqui ou ali onde há excesso. Mas a nossa proposta era de mudança de paradigma. Era um projeto só. Fiz a escolha. Eu sempre disse nos debates que estava ao lado de duas pessoas de bem, que eu queria dentro da minha equipe. Não é porque eu fui escolhida que não chamaria eles para trabalhar comigo. Nunca pensei em ser escolhida; eu disse isso ao governador. Pensava na primeira vez, em 2010 – por ter sido a mais votada, e por vir de órgão de classe, que sempre exige o primeiro. A palavra foi de renovação, sem ataques pessoais. A gente achava que estava estagnado há dez anos, desde quando eu não fui escolhida, e era a hora de dar uma virada. É um eleitorado muito difícil. O pessoal diz que somos uma classe econômica em aplausos. Cobramos mais de nós mesmos do que de outras pessoas. Vou trabalhar para servir a Bahia e o Ministério Público, não só do estado mas brasileiro, que tem sofrido de uma hora para outra com leis, como a lei de abuso de autoridade. Já temos um órgão de controle, o Conselho Nacional do Ministério Público; nossas corregedorias. Conseguimos em Brasília impugnar outras situações. Eu digo que ainda somos uma classe de trabalhadores com muito mais acertos. Cometemos falhas, como qualquer carreira, mas somos punidos. A classe é muito dura. Todas as denúncias, se não apurar aqui, o CNMP puxa. Hoje não há essa possibilidade. Nossas contas são examinadas pelos órgãos de controle. Há um controle da imprensa, que a gente acha muito benéfico.

A senhora enxerga uma disputa de forças entre o Ministério Público e o Judiciário, no âmbito federal?

Você fala da Lava Jato, né? Conheço a maioria dos integrantes da Lava Jato e, como presidente da Conamp, já emiti várias notas defendendo os colegas. Se não fossem eles, seriam outros. Mas acontece que foram eles que começaram esse trabalho que realmente mudou a face do combate à corrupção. De maneira geral, apoiamos os colegas e há um trabalho interligado entre o Ministério Público Federal e Ministério Público dos estados. Temos colegas daqui cedidos para trabalhar em Brasília. Mas volto a dizer: teve muito mais acertos do que erros. Dentro do Ministério Público, alguns respondem processos no CNMP. Alguns sofreram punições, outros não. O que não é bom são os exageros. Mas até agora, do que foi apurado, há muito mais acertos. E eu queria que não fosse verdade muitas coisas. A maioria dos crimes existiu mesmo. E mesmo com a Lava Jato em franco desenvolvimento, ainda acontecem fatos semelhantes. Os processos são revisados: passam pelo primeiro grau, segundo grau, sobem para o STJ, Supremo. E se o Supremo disser para descer [de instância], desce. A gente cumpre a lei. E a maioria da população tem apoiado a Lava Jato, o trabalho dos procuradores, dos promotores. Porque está vendo que realmente teve resultado, muito dinheiro público repatriado. As pessoas estão confessando, fazendo delação premiada, mostrando que é verdade o que as pessoas comentavam, os jornais comentavam. A gente sabia que existia, não tinha como provar. A delação foi um fator determinante. Começou a investigação dentro de um posto de gasolina, de uma coisa pequena. Nós somos muito bem preparados para passar num concurso. Um concurso do Ministério Público, do Judiciário, da Defensoria Pública, requer um grande aprendizado. Nós estudamos muito. E o que eu digo do Ministério Público é isso: fala-se de corrupção em todas as áreas, mas graças a Deus aqui é muito pouco. Nós ainda temos a confiança da população. O que aparece de denúncia a gente apura. Então, o problema da Lava Jato, eu acho que personificou o grupo dos colegas. Houve a decisão do processo ir para Curitiba, depois parte para o Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Com isso, acho que pode ter melhorado. E em todos os lugares o procedimento tem sido o mesmo. Tem várias pessoas recorrendo, outros absolvidos. É o preço que nós temos que pagar pelo aperfeiçoamento da função do Ministério Público pós-88.

*ATarde



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